ESTUDOS DA ESCRITURA SAGRADA:

INTRODUÇÃO AO LIVRO DE:

 

 

 

 

 

         INTRODUÇÃO

 

 

 

Visão geral

         Autor: desconhecido.

         Propósito: Explorar os limites e os usos adequados da sabedoria proverbial tradicional no caso do sofrimento de um justo.

         Data: c. 970-586 a.C.

         Verdades fundamentais:

         Yaohu tem propósitos por trás de todo sofrimento, mas esses propósitos estão, em grande parte, ocultos para nós.

         A sabedoria proverbial convencional aplica-se facilmente a algumas situações – mas não do sofrimento dos justos.

         Os justos que sofrem devem humildemente associar os seus lamentos com afirmações acerca da bondade e da justiça de Yaohu.

         A compreensão humana acerca da sabedoria é limitada e sempre começa com o temor de Yaohu e a obediência aos seus mandamentos.

 

 

         Propósito e características

         Entre os escritos de sabedoria do Antigo Testamento (Jó; Provérbios; e Eclesiastes), o livro de Jó situa-se ao lado de Eclesiastes como uma exploração dos limites e usos adequados da sabedoria proverbial convencional. A sabedoria proverbial convencional descreve os ideais de vida e dá direção para entender o curso normal da experiência humana. Contudo, é possível entender mal e apropriar-se indevidamente da sabedoria proverbial como se o ideal e o comum fossem sempre apropriados. Surgem muitas circunstâncias que exigem uma reflexão mais profunda e um esforço que vá além da orientação da sabedoria proverbial. Isso se aplica especialmente ao sofrimento dos justos. O livro de Jó opõe-se a uma confiança ingênua na sabedoria proverbial ao confrontar questões sobre a bondade e a justiça de Yaohu, uma vez que ele permite que o seu povo fiel sofra.

 

 

 

       CRISTO EM JÓ.

            O livro de Jó prenuncia a pessoa e a obra de Cristo de inúmeras maneiras. A ligação mais direta entre Cristo e esse livro está no fato de que Cristo é “sabedoria de Yaohu” (1Co 1,24) e que nele “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” (Cl 2,3). Essa identificação de Cristo com a sabedoria provém do fato de que ele é o Logos eterno por intermédio de “quem todas as coisas foram feitas” (Jo 1,3) e que, como o Messias encarnado, ele é Aquele em quem repousa “o Ruach Hakodesh de sabedoria e de entendimento, o Ruach Hakodesh de conselho e de fortaleza, o Ruach Hakodesh de conhecimento e de temor do ETERNO” (Is 11,2). As coisas pelo qual Jó e seus amigos anseiam, a saber, entendimento e sabedoria, são encontrados em Cristo. Quando buscamos sabedoria à parte dele, estamos condenados a encontrar apenas a loucura do mundo (1Co 3,19). Quando homens e mulheres estão unidos com Cristo, ele lhes concede sabedoria. A graça dada aos que crêem é derramada “em toda a sabedoria e prudência” (Ef 1,8). Ou seja, a sabedoria começa com a fé em Cristo e provém da graça que é encontrada no ato de seguir Cristo e confiar nele. Todo cristão que “necessita de sabedoria [deve pedi-la] a Yaohu, que a todos dá liberalmente” (Tg 1,5). Mesmo assim, ao contrário do espírito contencioso que Jó e seus amigos exibem enquanto conversam, “a Sabedoria, porém, lá do alto é, primeiramente, pura; depois, pacífica, indulgente, tratável, plena de misericórdia e de bons frutos, imparcial, sem fingimento” (Tg 3,17).

         Segundo, o livro de Jó insiste que a capacidade humana de compreender a sabedoria é tão limitada que, para nós, a sabedoria pode se resumir em dois elementos: temer a Yaohu e obedecer aos seus mandamentos (veja a nota sobre 28,28). Esse tema se cumpre em Cristo no sentido de que a sabedoria que vem de Yaohu significa submeter-se a Cristo com reverência e obediência.

         Terceiro, em inúmeras ocasiões, o livro de Jó reconhece a necessidade desesperada que os seres humanos têm de um mediador entre eles e Yaohu (veja 5,1; 9,33; 16,20; 19,25; 33,23). A situação difícil da humanidade caída é tão terrível que precisamos de alguém com acesso ao trono de Yaohu para defender a nossa causa. Somos impotentes em nós mesmos. Cristo supre essa necessidade como o único Mediador entre a humanidade e Yaohu (1Tm 5,2).

         Quarto, como um homem justo cuja lealdade para com Yaohu é testada pelo sofrimento, Jó prenuncia o cumprimento do teste em Cristo. Cristo excedeu em muito a justiça de Jó no sentido de que não teve pecado algum. Contudo, ele foi tentado no deserto e ao longo de toda a sua humilhação simplesmente para suportar tudo sem culpa (Hb 4,15). Por essa razão, quando não são perfeitos em seus sofrimentos, os fiéis podem descansar certos de que Cristo sofreu em nome deles e de que sua justiça e recompensa lhes são imputadas por meio da graça de Yaohu.

 

        

 

JÓ. A finalidade do Livro de Jó não é explicar – conforme comumente se diz – o enigma do sofrimento injusto, nem resolver o problema do mal. É, antes, uma tentativa do homem perplexo de situar-se ante a Yaohu santo e todo-poderoso.

 

         Plano do livro. A obra se divide claramente em cinco partes:

         1. Um prólogo em prosa, no qual o herói, Jó, homem piedoso e rico, é repentinamente atingido por calamidades inexplicáveis e, apesar disso, conserva toda a sua confiança no ETERNO (1,1 – 2,13).

         2. Um diálogo em verso, no qual se debatem Jó, homem brioso e revoltado, e três amigos seus: Elifaz de Teman, Bildad de Shûah e Sofar de Naamá, sábios típicos do antigo Oriente. Este diálogo se desenrola de maneira lenta e solene, ao longo de três séries de discursos poéticos, enquadrados por dois monólogos do herói (3,1 – 31,40).

         3. Uma série de discursos em verso, representando a intervenção imprevista de um quarto amigo, Elihu, filho de Barakel, o buzita (32,1 – 37,24).

         4. Um diálogo, em verso, entre o ETERNO e Jó (38,1 – 42,6).

         5. Um epílogo, em prosa, em que o herói recupera a saúde, a riqueza e a reputação, bem como novos filhos. Como os patriarcas, ele morre repleto de dias (42,7-17).

 

         Unidade e data de composição. As diferenças de vocabulário, de estilo, de tradição cultural e de idéias religiosas, verificáveis nas diversas partes da obra, indicam a muitos leitores que ela não foi composta de um só jato. A título de hipótese, pode-se propor:

         É bem provável que o prólogo e o epílogo em prosa tenham inicialmente constituído um conto folclórico (1, 1 – 2,13; 42,7 – 17). Ele narrava a paciência exemplar de um homem da terra de Us – talvez em Edom (1,1), a sudeste do mar Morto – que gozava de uma reputação única entre os “filhos do Oriente”. Pode-se pensar que a história deste Jó, dotado de uma piedade sem igual (1,1-8; Tg 5,11), circulava de forma oral entre os sábios do Oriente Médio, lá pelos fins do segundo milênio a.C., e tenha sido recontado em hebraico na época de Samuel, David e Salomão (sécs.XI e X a.C.).

         Depois da catástrofe de 587 a.C., os judeus exilados em Babilônia tinham perdido tudo. Sua perplexidade levava alguns a perder toda crença no valor da existência e a questionar até sua fé na justiça de Yaohu. Servindo-se da bem-conhecida história do infeliz Jó (Ez 14,14.20), um poeta da segunda geração do Exílio (cerca de 575 a.C.) compôs o poema (3,1 – 31,40; 38,1 – 42,6), com uma finalidade pastoral e profética, semelhante à do seu predecessor Ezequiel (cerca de 592-580 a.C.). Este poeta traz à cena o herói, que sofria sem causa aparente, e três de seus amigos, tentando discutir poeticamente o valor da existência e os direitos do homem à justiça, humana e divina (31,35-37). O próprio ETERNO oferece ao herói ocasião de defender-se e de condenar a conduta divina (40,8-14), mas Jó recusa-se a aceitar o desafio e simplesmente se arrepende da sua presunção (42,1.6).

         O poema se encerra com o reconhecimento da santidade divina, que ultrapassa infinitamente a imaginação dos homens e até mesmo as noções mais difundidas da providência e da bondade de Yaohu. Sugere-se ainda uma noção de pecado que transcenderia uma distinção demasiado simplista entre bem e mal, distinção em que se situa a ambição egocêntrica de um homem virtuoso.

         O epílogo em prosa (42,7-17) parece contradizer a teologia do poeta, ao afirmar o dogma popular da restrição individual. Este epílogo só sobreviveu porque pertencia a um conto clássico, herança da sabedoria secular do Oriente. Talvez ele fosse admiravelmente conveniente às idéias dos escribas moralistas do judaísmo na época persa, que asseguraram assim a transmissão do poema à posteridade.

         Um discípulo da escola jobiana ajuntou, provavelmente com fins apologéticos, os discursos de Elihu (32,1 – 37,24). Notam-se, efetivamente, nestes discursos uma linguagem, um estilo e um método retórico bastante distintos dos de um diálogo propriamente dito. Elihu insiste no valor educador do sofrimento e acrescenta certos argumentos que mestres da escola sapiencial tradicional lamentaram ser insuficientemente desenvolvidos por Elifaz, Bildad e Sofar.

         O texto do terceiro ciclo do diálogo poético entre Jó e seus três amigos (em particular 25,1 – 27,23) parece ter sofrido dano na transmissão oral ou manuscrita. Falta o terceiro discurso de Sofar, e certas sentenças postas na boca de Jó parecem refletir a posição tradicional de um de seus amigos (24,18-25; 26,5-14). Alguns exegetas sugerem que os editores do poema procuraram suavizar a dureza do herói, emprestando-lhe palavras originalmente pronunciadas por Sofar. Muitos pensam também que o Elogio da Sabedoria (28,1-28) representa uma adição posterior. Entretanto, seu estilo está bem próximo do tom dos discursos do ETERNO (38,1ss.), e pode-se supor que a finalidade deste poema era separar a discussão dialogada da peroração de Jó.

 

Gênero literário. Há tempos, notou-se que a forma literária deste livro é única nas Escrituras. Apesar de a tradição judaica e cristã o ter relacionado entre as obras de Sabedoria e de nele se encontrarem numerosas sentenças de sabor sapiencial, admite-se, hoje, que Jó escapa a todo esforço de classificação.

         A forma do diálogo, celebrizada por Platão, nasceu provavelmente na mais remota antiguidade, na Mesopotâmia e no vale do Nilo. Um documento cuneiforme, que remonta ao 3º milênio, levanta o problema do mal em termos ousados e é hoje conhecido como o Jó sumeriano. Outro texto cuneiforme, escrito em língua babilônica, trata do Justo sofredor. O Diálogo acróstico sobre a teodicéia, cuja cópia data ao menos do séc. IX a.C., põe em cena um doente e seu amigo, a discutir sobre a justiça divina, ao longo de vinte e sete estrofes de onze linhas cada uma. O amigo em questão emprega argumentos que reaparecem nos discursos de Elifaz de Teman.

         No Egito, o Diálogo do homem cansado da existência com sua alma faz falar um miserável enfermo, escorraçado de casa, como um maldito com verdadeiro lirismo. Não se pode deixar de observar que Jó é o único personagem da literatura hebraica que exprime fascínio pela morte. Além disso, o vocabulário e numerosas alusões deste poema bíblico sugerem certa familiaridade com a cultura egípcia.

         É, pois, provável, que o poeta de Jó pertencesse ao circulo internacional da Sabedoria e conhecesse a forma literária do diálogo. Tal gênero se prestava impunemente à apresentação em público de opiniões subversivas ou, pelo menos, de idéias que questionavam os dogmas de uma sociedade conformista. Deve-se notar, entretanto, que o poeta compôs uma obra original.

        

         Nacionalidade do poeta. O diálogo em verso ignora a eleição e a missão de Israel, a aliança mosaica, a aliança davídica, a colina sagrada de Sião, o Templo, o culto sacrifical e a esperança messiânica. Aliás, a história popular e arcaica do herói Jó apresentava-se em moldes estrangeiros, nada israelitas. A presença de palavras e torneios de sintaxe que não se encontram em nenhuma outra parte da Bíblia hebraica confirma o caráter excepcional do livro. Alguns estudiosos concluíram, destas observações, que o autor era um sábio oriental não-israelita. Chegou-se até a levantar a hipótese de ser o hebraico do texto atual tradução de algum original aramaico ou árabe.

         Tais conjeturas não têm fundamento. A utilização de um dialeto hebraico diferente do de Jerusalém, ao lado de algumas liberdades tomadas pelo poeta, pode explicar as particularidades literárias de Jó. O criador do diálogo em versos era um judeu, pois conhecia intimamente os oráculos dos grandes profetas, em particular, as “confissões” de Jeremias. Ele sabia de cor os salmos que se cantavam no Templo de Jerusalém e os provérbios que “se diziam” na corte dos reis de Judá.

         Pode-se supor que, tendo sobrevivido à catástrofe de 587 (data em que o Templo foi destruído, a cidade incendiada, a população dizimada, os sobreviventes dispersados ou deportados para Babilônia), o poeta foi um dos primeiros “judeus” (por oposição ao sentido antigo de “Israel”). A seu modo, diferentemente do profeta Ezequiel, ele contribuiu para o nascimento do judaísmo. Mesmo não tendo sido nem profeta, nem sacerdote, nem salmista, esse herdeiro de sabedoria cosmopolita exerceu, junto aos seus contemporâneos, um ministério profético e pastoral. Para uma comunidade destituída de culto e desarraigada, ele criou uma nova literatura, reunindo os gêneros mais diversos como a lamentação, o hino, a máxima, a sátira, a controvérsia judiciária, a maldição, a invectiva profética e até mesmo o antigo relato de teofania, para propor, sob forma quase dramática, uma espécie de “diversão” literária.

         Ocasião do poema. Na falta de indicação explícita, pode-se apenas levantar uma conjetura quanto à ocasião do poema. Como outras obras em verso e numerosas tradições em prosa ritmada, conservadas no Antigo Testamento e tradicionalmente consideradas documentos escritos, o diálogo de Jó foi, sem dúvida, inicialmente “publicado” em forma oral. Não era, originalmente, um manuscrito para leitura. Devemos antes pensar em verso que se “diziam” ou se recitavam com acompanhamento musical. Como as célebres rapsódias da Grécia homérica ou os cantos épicos dos trovadores medievais, os lamentos de Jó foram cantados provavelmente em círculos de deportados judeus saudosos de suas festas. Sabe-se que os grupos étnicos ou religiosos desarraigados apegaram-se obstinadamente à observância de seus calendários rituais. Sem Templo e sem altar, que gestos litúrgicos os exilados ou Babilônicos poderiam cumprir?

         Nessa época tumultuada e incerta, puseram-se os judeus a celebrar o Ano Novo e o Dia do grande Perdão, antes da festa das Tendas. Teria o poeta de Jó lançado mão desta ocasião para distrair as multidões, dirigindo-lhes, de forma “paralitúrgica”, uma mensagem concernente à verdadeira fé?

         Sabe-se que a festa babilônica do Ano Novo calcava-se na paixão, na morte simbólica e na renovação do monarca, dentro do quadro de renovação da criação e da fertilidade vegetal e animal. Ora, acontece que o poeta de Jó se serviu de numerosos traços da ideologia régia para descrever os sofrimentos e orgulho do seu herói. Aliás, ele entreteceu, na sua obra, alusões à criação do mundo e articulou os discursos do ETERNO com o ciclo do ano, culminando com o retorno da chuva do outono (38,38), o que, também, foi feito pelo autor dos discursos de Elihu (36,27 – 37,24). Seja como for, a intenção do poeta ia muito além da veneração do calendário. Com a ajuda de uma parábola, ele quis proclamar um oráculo profético de advertência e de esperança.

         Aos que se sentiam devorados pela amargura (Lm 3,15) e mesmo pelo rancor contra um Deus que não cumpria suas promessas, o poeta narrou a antiga história do homem integro da terra de Us, porque essa história questionava os deportados judeus no mais profundo do seu derrotismo, ao perguntar-lhes: “Será em troca de nada que Jó teme a Yaohu?” (1,9).

         Fora em vão que o povo da Aliança tinha mantido, apesar de todas as corrupções de vários séculos, certo nível de pureza cultual e um sentido ainda vivo de responsabilidade social. Comparando-se a seus perseguidores, Israel podia facilmente pensar que não merecia o seu destino. Arrogava-se direitos sobre seu CRIADOR. O poeta de Jó apõe sua voz a essa ilusão de todas as religiões naturais. Como os grandes profetas e alguns salmistas, ele compreendera que o mercantilismo não tem lugar na verdadeira fé e que à sublimidade corresponde à gratuidade da devoção.

         A teologia do livro. O leitor moderno não pode ignorar a complexidade da composição do poema, nem o contexto histórico no qual veio à luz.

         A história em prosa. Alguns aspectos do conto folclórico dificilmente corresponderiam ao pensamento do autor do diálogo. Discípulo de Jeremias, o sábio judeu meditara sobre o escândalo da desgraça dos humildes e da prosperidade dos maus. Ele provavelmente não aceitava explicar o sofrimento “sem causa” como resultado de uma aposta entre um Deus ingênuo e o mais cínico dos membros da corte celeste. Aliás, o poeta evitou cuidadosamente qualquer menção a este “adversário” mítico. Em vez disso, é o ideal de uma piedade “gratuita” que alimentou seu gênio poético e estimulou o rigor da sua indagação teológica.

         O poeta não é, pois, responsável por todos os pormenores da narrativa em prosa. Serviu-se dela simplesmente como de um trampolim do qual lançar seus discursos. Uma vez que a história do piedoso Jó punha em cena diferentes personagens, ele os fez falar à sua própria maneira. Utilizou o canto popular para disfarçar uma discussão sobre a condição humana, o “toma lá, dá cá” dos cultos (2,4) e a pureza de uma fé que não pede contas a Yaohu.

         Em contradição com os protestos de Jó, ou com os discursos do ETERNO, o epílogo em prosa, sabe-se bem, reafirma o dogma da retribuição. Era precisamente isto que repugnava à sensibilidade do poeta e é o que ele atacou com vigor sem paralelo na literatura do antigo Israel. Daí surge a questão que vem perturbando os intérpretes ao longo dos séculos: o desfecho do livro poderá de alguma forma, concordar com a teologia do poeta?

         É preciso aqui recordar a distinção entre a recitação oral de um poema e sua codificação escrita, em data posterior. Por pertencer à herança nacional, a “narrativa folclórica” facilmente encontrou lugar nos manuscritos legados à posteridade judaica da época persa (séc. V e IV a.C.) pelos guardiões dos tesouros literários da nação. O “poema” encontrou aí seu lugar, por ter sido vazado na narrativa tradicional. Podemos até supor ter sido precisamente a conclusão piedosa da história em prosa que facilitou a sobrevivência do poema, no qual a ousadia da revolta de Jó e a ironia da resposta divina questionam a justiça de Yaohu ou, quando menos, distinguem-na da justiça dos homens.

         O diálogo em verso. O autor do diálogo deu livre curso à paixão que sempre se apodera do espírito humano, quando confrontado com o enigma da dor. Ele não perde de vista, por um momento sequer, o escândalo intelectual e moral que perturbou o judaísmo, desde sua aparição na história, e que continua a inquietar os homens. O poeta de Jó fala à humanidade de todos os tempos, porque não somente enfrentou o escândalo da existência e da morte, mas também retratou o homem de fé que, na agonia, raia a blasfêmia e, ao mesmo tempo, busca a presença de um Deus que ama – Yaohu. Para ele, o silêncio divino é o sofrimento último. Mais que a destituição dos bens, que a perda dos filhos, o banimento da sociedade, a incompreensão da esposa e dos amigos e mais, até mesmo, que os terrores de uma doença fatal.

         Outro tema se enxerta neste: Jó reivindica, como um direito, que sua integridade seja publicamente reconhecida. Ao contrário dos cantores de lamentações que, no livro dos Salmos, suplicam, de cem maneiras, para ser libertados de seus males. Jó pede somente que Yaohu admita a sua inocência.

         Jó é um exemplo não somente de virtude, mas também de brio. Sob o efeito dos ataques insidiosos da doença e da dor moral, seu brio exacerbado vai descambando, pouco a pouco, para um orgulho sobre-humano, quase para a desmesura de um titã. Ele se compara ao Oceano e ao Monstro marinho (7,12) que, segundo a mitologia acádica, acorrentou e manteve sob os olhos o deus da ordem, ansioso por salvaguardar as fronteiras da terra habitável. Elifaz captou a nova dimensão da hybris que impele o homem moral, no ardor da provação, a se tomar, erradamente, por um semi-deus. Ele pergunta a Jó, fazendo clara alusão ao mito do Homem primordial:

 

         Serás Adão, o que nasceu primeiro, ou foste dado à luz antes dos outeiros? (15,7)

 

         Sem vergar, o herói persiste em exigir, não a cura, mas em ser liberado das acusações assacadas contra ele. É esse desejo obstinado que o leva a romper, por um momento, a crença tradicional no caráter definitivo da morte, crença que sempre aceitara (7,21; 14,10). Após ter declarado que tinha, nos céus, uma testemunha que tomaria sua defesa contra o próprio Deus (16,18-21). Ele clama, enfim, sua certeza de que, para além do seu último suspiro, já nas bordas do abismo, o seu redentor se levantará, vivo, para lhe permitir ver a Yaohu – seu Deus (19,25-26).

         Todos os seus estão mortos ou, de certa forma, o excomungaram (19,13-22); ele não tem herdeiro humano que possa resgatar sua honra, depois de sua morte. Entretanto, ele sabe – e afirma solenemente esta certeza – que um ser misterioso desempenhará esse papel. De acordo com o antigo direito consuetudinário, o “redentor” devia ser um parente do morto, cujo dever era vingar o sangue derramado (de onde a expressão: “o redentor do sangue”) ou preservar, através de compra legal, a integridade da terra ancestral (2Sm 14,11; Rt 2,20 etc.). Se bem que certas palavras desta passagem, hoje famosas, tenham sido mal preservadas nos manuscritos e que as antigas versões quase não ofereçam auxílio, o texto hebraico de 19,26b está solidamente confirmado: Na minha carne contemplarei a Yaohu.

         Compreende-se por que os primeiros cristãos leram aqui o prelúdio da fé na ressurreição da carne e a prefiguração de um “Redentor” que venceria a morte. No séc. VI a.C., a expressão “na minha carne” significava, provavelmente, o homem na sua plena identidade concreta, e tal modo de ver é confirmado pelas repetições na frase que segue (v. 27). Aliás, foi isto que, entre os judeus e os primeiros cristãos, deu a crença na vida futura uma forma que nada tem de comum com a idéia helenística da imortalidade da alma. A crença na ressurreição da carne supõe uma esperança realista numa vida em comunhão com Yaohu, contrastando com o modo etéreo e desprovido de substância sugerido pela especulação não-hebraica sobre a alma imortal. Além disso, esta crença pressupõe um ato soberano de nova criação, por parte de Yaohu, sem jamais considerar a imortalidade como um direito inerente à natureza humana.

         As interpretações deste Credo notável (19,23-27) são as mais diversas, mas não há dúvida de que o poeta de Jó preparou, desde a aurora do judaísmo, uma teologia da mediação entre um Deus que parece hostil e se mantém longínquo, de uma parte, e, de outra, o homem abandonado no mundo. Pode-se pensar que este poeta tenha legado ao seu herói uma esperança que seu coração nutria e que conseguiu exprimir segundo uma tríplice  gradação: Primeiro, o sonho inacessível de um árbitro que interviesse entre Yaohu e o homem, pondo-o face a face, realizando a função de conciliador (9,33); em seguida, a convicção de que, depois do seu crime, Jó receberia de sua testemunha uma defesa póstuma na corte suprema (16,12-21); finalmente, a certeza inabalável da presença final de um redentor que não somente resgatará sua honra, mas ainda lhe permitirá ver a Yaohu (19,25-27).

         Até a peroração de sua longa apologia, o herói conserva a dignidade de um homem que não tem nenhum sentimento de culpa. Lembra-se somente dos pecadilhos de juventude. Ele acolherá, pois, a Divindade, revestido de uma majestade real. “Como um príncipe” ele irá ao encontro do Poderoso (31,37).

         A teofania do seio do furacão. As respostas de Jó aos discursos do ETERNO mudam de tom de maneira surpreendente. E o leitor descobre a intenção profunda do poeta: não é sua intenção resolver o problema do mal, nem justificar os caminhos divinos segundo os cânones da moral humana. Trata-se, pelo contrário, de purificar a teologia de todo moralismo antropomórfico, de esboçar uma nova abordagem da realidade da fé e, finalmente, de indicar o caráter insidioso do pecado que espreita o homem integro e piedoso.

         A primeira intenção do poema de Jó é liberar a sabedoria divina da noção humana de justiça. Quando o ETERNO “responde” a Jó, do seio do furacão (alusão velada às teofanias de Moisés, Êx 19, e de Elias, 1Rs 19), ele não oferece, de fato, nenhuma resposta às perguntas do homem de dor. Antes, é ele que faz novas perguntas, uma depois da outra, antes de chegar a mais perturbadora:

O contendor do Poderoso ainda critica?

        

Responda, POIS, O QUE CENSURA Yaohu (40,2).

 

recusa-se a apanhar a luva (vv. 3 – 5), e o ETERNO, mais uma vez, ironiza o campeão que procurava briga e o convida, não sem ironia, a preparar-se para o último combate:

 

Cinge os teus rins, como um guerreiro; vou te perguntar e tu me farás saber:

         Pretendes mesmo anular meu julgamento, e condenar-me, para te justificar? (40,7 – 8).

 

         Esta dupla pergunta vai ao núcleo da discussão e oferece a chave para todo o Livro de Jó. O poeta serve-se do mistério do sofrimento para sondar o mistério de Yaohu.

         O herói não deixou de proclamar sua integridade. Várias vezes indicou que sua miséria constituía um desmentido à justiça de Yaohu. De fato, ele mantinha que Yaohu reconheceria, com toda certeza, sua inocência e, querendo implicitamente ditar seus próprios termos ao Poderoso, tentava justificar a si mesmo.

         Enquanto seus amigos entravam na liça para defender incansavelmente a idéia da retribuição divina e o valor da conversão (mostrando-se empenhados num empreendimento intelectual de “teodicéia”, ou justificação de Yaohu), Jó insistia nos direitos que o homem adquire por sua conduta moral. Ele se fechava na busca de uma “antropodicéia”, ou justificação do homem. O poeta pode agora mostrar que a justificação do homem nunca será conseguida senão à custa da condenação de Yaohu.

         O estilo da controvérsia profética que apareceu em Jó insistia nos direitos que o homem adquire por sua conduta moral. Ele se fechava na busca de uma “antropodicéia”, ou justificação do homem. O poeta pode agora mostrar que a justificação do homem nunca será conseguida sendo à custa da condenação de Yaohu.

         O estilo da controvérsia profética que apareceu em Jó 40,2 reencontra-se no v. 8, onde o verbo “quebrar” (nesta tradução: anular [meu julgamento]) é o mesmo que emprega Jeremias ao falar da ruptura da antiga Aliança (Jr 31,32). Fazendo uso de tal terminologia, o poeta sugere que Jó partilhava, de fato, com seus amigos, a velha crença na retribuição, ligada à ideologia da aliança de obrigação mútua. Jó não “teme a Yaohu em vão” (1,9). Tanto como seus amigos, também ele atribuía implicitamente a Yaohu um sentido humano da justiça, baseada na idéia comercial de compra e venda.

         Querer encontra um vínculo entre a perfeição moral do homem e sua felicidade é conceber a Yaohu como um homem de negócios tratando com seus clientes. A fórmula “toma-lá-dá-cá” (2,4) não exprime apenas a idéia do “adversário” mítico da história em prosa; ela caracteriza, igualmente, todos os personagens do diálogo em verso. E é isto que o próprio ETERNO revela a Jó, falando-lhe de dentro do furacão. O poeta mostra os perigos da teologia da Aliança, cada vez que o dogma da obrigação contratual se corrompe e dá a impressão de que a liberdade de Yaohu é limitada. Como Israel, Jó pensava que sua integridade, superior à de todos os orientais, lhe garantia direitos sobre Yaohu.

         O herói é, enfim, persuadido a encarar o erro sutil da sua posição. Ele não pode justificar a si mesmo sem, ao mesmo tempo, declarar que Yaohu “é mau” (sentido literal do verbo em 40,8b). Jó aprende que, afinal, enveredara pelo mesmo caminho de seus três amigos. A defesa de Yaohu é, sempre, uma defesa do homem. A teodicéia é, de fato, uma “antropodicéia”.

         Posto em presença da santidade infinita do Criador dos mundos, Jó descobre que não pode salvar-se a si mesmo. Deve renunciar à ilusão da religião como técnica de bem-estar e segurança. Ao compreender que temeu a Yaohu “por nada” (1,9), a graça inefável da presença se torna para ele o suficiente. Ele não pede mais nada.

         A segunda intenção do poeta era delinear uma abordagem nova para a realidade da fé. É verdade que as antigas tradições “javista” tinham, há muito, expressado a relação entre Yaohu e o homem como um simples relacionamento de confiança entre duas pessoas (Gn 15,6). Os grandes profetas, Isaías em particular, já haviam entrevisto na fé (emuná) o segredo da perseverança, a capacidade de viver um amém (Is 7,9) ou de viver a justiça e a retidão (Hab 2,4). O poeta jobiano não usa esta linguagem, mas mostra claramente que o milagre da presença divina está na própria raiz do triunfo sobre o sofrimento. Ao evocar a teofania de Moisés e de Elias e ao antecipar a epifania final, celebrada nos hinos da festa do outono, o poeta dizia a seus conterrâneos deportados (sem Templo, sem monarquia, sem pátria nem esperança de um porvir nacional) que Yaohu do céu e da terra estava ainda e sempre com eles.

         O furacão e a escuridão são os antigos símbolos da presença por trás da máscara. Enquanto os monstros míticos, o Sinuoso (Leviatan) e o Bestial (Behemot), elevam o enigma do mal sempre a uma escala universal, o arquiteto do cosmo revela a Jó, um simples indivíduo, as maravilhas da liberdade divina. O pragmatismo humano não tem lugar na ordem da criação, onde a chuva cai até sobre terras inabitadas (38,26). Ter fé é crer em um Deus livre – Yaohu, que se inclina, apesar das aparências contrárias, sobre a fraqueza, o pecado ou o orgulho da menor de suas criaturas.

         Através do desenvolvimento desses temas, de modo indireto, por meio do procedimento dramatúrgico, o poeta esboça sutilmente um novo caminho para a compreensão da antiga noção de pecado. É esta a terceira intenção dos discursos do ETERNO e da resposta final de Jó. Diante da santidade que supera todo entendimento, o lutador desiste. A presença abriu-lhe os olhos. Agora ele vê com seus próprios olhos, em vez de conhecer por “ouvir dizer” (42,5).

         Vendo a “santidade”, ele toma consciência do seu pecado. Não cometeu nenhum dos crimes de que o acusaram seus amigos, mas cometeu o crime por excelência do homem moral: constituiu-se num “julgo-Deus-Yaohu”. Sua confissão é, portanto, inevitável:

         Também, por isso, tenho horror de mim e retrato-me no pó e na cinza (42,6-7).

 

         Jó exigira uma audiência, a fim de defender sua honra, mas sua moralidade, sem que ele a notasse, tornara-se uma técnica destinada a obter um atributo sobre-humano, análogo ao dos reis antigos que se enfarpelavam com os ouropéis do direito divino (40,10-14).

         A culpa de Jó não é de ordem moral; é a do homem que não somente se crê dono do próprio destino, mas ainda se erige, inconscientemente, em ser divino, uma vez que emite julgamento sobre Yaohu. Os discursos do ETERNO e a resposta de Jó contêm uma crítica ao subjetivismo humanista, que modela Yaohu pelas normas do pensamento humano. O poema de Jó separa a realidade de Yaohu das restrições da razão ou da moralidade humanas. O poeta antecipa o apóstolo Paulo, porque sua visão do ETERNO lhe permite discernir entre a idolatria da fé e a lei, concebida como fonte de autojustificação.

 

 

         Texto e tradução. Em 1952, foram encontrados numa gruta perto do mar Morto os fragmentos de um manuscrito de Jó, em caracteres hebraicos antigos. Esta velha escrita, até então, parecia reservada aos livros do Pentateuco. Daí se vê a importância que alguns meios judeus atribuíam ao Livro de Jó desde antes da nossa era.

         O texto hebraico do Livro de Jó oferece graves dificuldades. Parece que o antigo tradutor grego (Septuaginta) já tropeçara nelas. Às vezes, ele tenta escapar com uma paráfrase bastante vaga, outras vezes, pula certo número de versículos sem traduzi-los.

         Foi necessário esperar até o trabalho crítico de Orígenes e o talento tradutor de Jerônimo para tornar as angústias de Jó acessíveis aos cristãos.

         As particularidades do texto hebraico contrastam, muitas vezes, com o que os outros livros da Bíblia nos dão a conhecer da língua hebraica antiga. Diante disso, de um século para cá, os tradutores tomaram o hábito de considerar muitos versículos de Jó desfigurados por corrupções, que eles “corrigem” de maneira muitas vezes bem engenhosa. Entretanto, a exegese contemporânea foi adquirindo um senso sempre mais vivo da fragilidade dessas conjeturas e também do isolamento do Livro de Jó num contexto cultural hoje desaparecido. A presente tradução optou resolutamente pelo texto hebraico tradicional, inspirando-se amplamente nos comentadores judeus medievais para a interpretação das passagens obscuras.

VAMOS AS PRINCIPAIS PERSONAGENS DE JÓ:

 

 

         Pontos fortes e êxitos:

         Era um homem de fé, paciência e perseverança.

         Era conhecido como alguém generoso e afetivo.

         Era muito rico.

 

 

         Fraquezas e erros:

         Permitiu que o desejo de compreender o motivo do sofrimento o oprimisse e o levasse a questionar Yaohu.

 

 

         Lições de vida:

         Conhecer a Yaohu é melhor que conhecer as respostas.

         Yaohu não é arbitrário ou descuidado.

         A dor nem sempre é fruto de punição.

 

 

         Informações essenciais:

         Onde: Uz.

         Ocupação: Rico fazendeiro.

         Familiares: Esposa e dez filhos (nomes não mencionados). As filhas da segunda série de filhos – Jemima, Quesia e Quéren-Hapuque.

         Contemporâneos: Elifaz, Bildade, Zofar e Eliú.

 

 

 

         Versículos-chave: “Meus irmãos, tomai, por exemplo, de aflição e paciência os profetas que falaram em nome do ETERNO. Eis que temos por bem-aventurado os que sofreram. Ouvistes qual foi a paciência de Jó e vistes o fim que o ETERNO lhe deu; porque o ETERNO é muito misericordioso e piedoso” (Tg 5,10.11).

 

 

 

         A história de Jó pode ser encontrada no livro de Jó. Ele é também mencionado em Ezequiel 14,14.20 e Tiago 5,11.

 

INTRODUÇÃO AO LIVRO DE SALMOS:

 

 

SALMOS

 

 

 

         INTRODUÇÃO

 

 

 

         Visão geral

         Autores: Moisés, Davi, Salomão, os filhos de Asafe, Etã, o ezraíta, e vários autores desconhecidos.

         Data: c. 1440-400 a.C.

         Propósito: Prover para Israel uma coletânea de cânticos para a adoração adequada para diversas situações.

         Verdades fundamentais:

         Yaohu merece louvor.

         Yaohu protege e resgata os justos quando eles padecem necessidade.

         Yaohu irá abençoar o obediente e julgar o desobediente.

         A revelação de Yaohu deveria ser o fundamento da adoração.

         A verdadeira adoração implica uma vasta gama de emoções que é fruto de experiências da vida.

 

 

 

         A Teologia dos Salmos

         Assim como a composição do Saltério aconteceu durante o período do Antigo Testamento como um todo, assim também a teologia do Saltério é tão abrangente como a teologia de todo o Antigo Testamento. Martinho Lutero chamou o livro dos Salmos de “uma pequena Bíblia e o sumário do Antigo Testamento”.

         Nos salmos, no entanto, as verdades teológicas não são apresentadas de modo sistemático ou abstrato; as realidades transmitidas neles estão relacionadas à vida e falam no contexto da fé baseada numa aliança.

 

 

 

         CRISTO EM SALMOS.

         Os leitores cristãos dos Salmos vêem justamente Cristo revelado ao longo do Saltério. Todo o Antigo Testamento, incluindo o Saltério, aguardava a pessoa e a obra do Messias, incluindo não somente aqueles associados ao seu primeiro advento, mas também aqueles que o Novo Testamento atribui à sua vinda. O próprio Messias e os escritores do Novo Testamento fazem extenso uso dos salmos para expressar temas como o sofrimento do Messias (p. ex., Mt 27,46) e a sua glorificação (p. ex., Mt 22,41-46). Além disso, para o cristão, o Messias se torna o objeto de culto do Saltério. As orações em forma de cântico dos Salmos são direcionadas a Yaohu. O Messias – Cristo, como a segunda pessoa da Trindade, também é o objeto apropriado dos hinos e lamentos dos Salmos. O Messias é, ao mesmo tempo, o cantor (Hb 2,12) e o tema dos cânticos. Os que crêem em Cristo podem cantar-lhe o seu louvor (hinos), apresentar-lhe as suas queixas e petições (lamentos) e agradecer-lhe quando ele responde às suas orações (ações de graça). Além do mais, eles se lembram do que ele fez por eles na cruz (salmos de lembrança) e exaltam-no como o seu rei (salmos reais). Ele é a fonte de sua confiança (salmos de confiança) e a encarnação da sabedoria de Yaohu (salmos de sabedoria).

         Até os salmos que incluem imprecações, ou maldições, encontram cumprimento em Cristo. Esses salmos clamam pela justificação dos justos e pelo juízo de Yaohu contra os ímpios (p. ex., Sl 69,22-39). Essas orações refletem o chamado dos israelitas à guerra santa como os instrumentos do juízo de Yaohu. Com a vinda de Cristo para sofrer o juízo de Yaohu, a natureza da guerra do povo de Yaohu, mudou. Agora ela é mais intensa, porém dirigida, em primeiro lugar, contra “as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” (Ef 6,12). Quando Cristo voltar em glória, o tempo de misericórdia terá chegado ao fim e as imprecações dos salmos irão se cumprir contra todos os inimigos de Yaohu.

 

 

 

         SALMOS. O livro: Eis a coletânea dos “Louvores”. Insere-se ela depois da Lei e dos Profetas, encabeçando a terceira seção da Bíblia hebraica – os “Escritos” –, antes de Jó e dos Provérbios, com os quais forma uma tríade, dotada, no texto masorético, de um sistema especial de acentuação. A obra, que a versão grega dos Setenta denomina Psaltérion ou Psalmoi – donde o título usual de Livros dos Salmos –, contem cento e cinqüenta poemas.

         Assim como o Pentateuco – Similitude sem dúvida internacional –, o Saltério está dividido em cinco partes (1 – 4; 42 – 72; 73 – 89; 90 – 106; 107 – 150), encerrando-se cada uma delas com uma fórmula de bênção, ou doxologia. Mas esta repartição geral oculta coleções parciais, de maior ou menor importância. Com efeito, nota-se a existência de grupos de salmos que diferem entre si pela preferência que dão a um ou outro dos nomes dados a Deusseja ao nome específico do Deus de Israel (o tetragrama sagrado YHWH, traduzido por SENHOR – {DIGA-SE DE PASSAGEM, SÓ POR VONTADE DO “HOMEM” TERIA ESSE SIGNIFICADO A UMA ENTIDADE CRIADA POR MÃOS HUMANAS...!!! Anselmo Estevan.}) (3 – 41; 90 – 150), seja ao nome comum Elohim, isto é, Deus (42 – 83). É possível identificar também vários grupos internos: entre outros, “oração de David, filho de Jessé” (cf. 72,20), ou livrinhos dos filhos de Qôrah (42 – 49; cf. 84 – 85; 87 – 88) e de Asaf (73 – 83; cf. 50), os cânticos das subidas (120 – 134), os cantos denominados do Reino de Yaohu (93 – 99), a tríplice Hallel (113 – 118; 136; 146 – 150), no qual ressoa freqüentemente a aclamação litúrgica “aleluia”. Antes de esses escritos serem reunidos em um só livro, quiçá pelo fim do século III a.C. – já que é impossível precisar melhor a data –, fizeram-se desses salmos coleções parciais, independentes e desiguais. É esta formação progressiva da obra que explica várias anomalias, em particular a dupla recensão de um mesmo poema (14 = 53; 40,14-18 = 70; 57,8-12+60,7-14 = 108). Fora do Saltério encontram-se salmos isolados, espalhados em outros livros e pertencentes a épocas diversas, como por exemplo 1Sm 2,1-10; Is 38,10-20; Jn 2,3-10; Na 1,2-11; Hc 3,1-19; Lm 5; Dn 2,20-23.

         Os dois salmos iniciais, muitas vezes contados como um só, (certos manuscritos, em At 13,33) têm função de prefácio, e a grande doxologia final (150) encerra não apenas a quinta parte, mas o livro inteiro.

 

 

         Os títulos. Os salmos da Bíblia hebraica, excetuados trinta e quatro deles, levam títulos de extensão e caráter variáveis. Esses títulos, à guisa de ficha individual de identidade, remontam a um período bastante antigo, já que os primeiros tradutores gregos não mais entediam o sentido exato deles. Mesmo hoje, apesar dos esforços dos exegetas, muitas vezes não nos resta senão permanecer em conjeturas ou em silêncio.

         A maioria dessas indicações dizem respeito aos autores tradicionais: Moisés (90), Salomão (72, 127), Asaf (50; 73 – 83; cf. 1Cr 16, 4-7; 25, 1-2; Ne 7, 44), os filhos de Qôrah (42; 44 – 49; 84 – 85; 87 – 88; cf. 2Cr 20,19), Heman (88) e Etan (89; cf. 1Cr 15,7-19; 25,5), Iedutun (39; 62; 77; cf. 1Cr 16,41-42; 25,1.3; 2Cr 5,12; 29,14; Ne 11,17). Entre esses nomes sobressai o de David, citado no início de setenta e três salmos, especialmente no primeiro livro da coletânea, que, por este motivo, se chama com razão de “grande coleção davídica”. A menção a David vem acompanhada, treze vezes, de uma alusão a algum evento da vida desse rei. Compreende-se facilmente a preeminência do “cantor dos salmos de Israel” (2Sm 23,1). David gozava de reputação de poeta (2Sm 1,17.19-27; 3,33-34), de músico (1Sm 16,16-23; 18,10); a ele se atribuía a organização do culto e do canto litúrgico (1Cr 15,16; 23,5; Ed 3,10; Ne 12,36). A poesia israelita certamente existia bem antes de David. Prova disso é, entre outras, o grito de vingança de Lémek (Gn 4,23-24), a canção do poço (Nm 21,17-18), o cântico de Moisés e o cântico de Miriâm (Êx 15,1-21), a ode triunfal de Débora (Jz 5,2-31). Entretanto, a tradição considera que David deu grande impulso à lírica sacra; ela o considera como o autor mais notável, o animador, o pai espiritual dos salmistas, enquanto justo perseguido, penitente reconciliado, figura do Messias.

         As questões de autenticidade literária oferecem aos exegetas contemporâneos ampla matéria para discussões. Com efeito, a preposição hebraica que, nos títulos, precede os nomes das pessoas, presta-se a diversas interpretações divergentes: pode indicar uma referência ao autor, mas também, como na literatura agarítica, a pertinência a um ciclo literário ou uma alusão ao herói do poema. De todo modo, não há que esquecer: os salmos são realidade viva. Gerações e gerações “re-citaram” esses cantos, sem repeti-los: os fiéis os reviviam, harmonizando-os com as próprias circunstâncias; ademais, devido à sua vinculação com o culto, os salmos foram atualizados na liturgia, foram, por assim dizer, reeditados em função das circunstâncias novas. Antigamente não se entendia o conceito de autor e a propriedade literária com o mesmo rigor de hoje. Eis por que a tentativa de fixar a data de surgimento dos poemas em cada período da história de Israel e de demarcar a sua cronologia esbarra em sérias dificuldades. Um documento relativamente tardio bem pode provir de tradições seculares; em contrapartida, compositores recentes ressuscitam as obras dos seus predecessores, adotam e adaptam material antigo; por vezes encaixam num escrínio novo fragmentos arcaicos e até, eventualmente, relíquias da literatura dos povos vizinhos. Prolongar-se-á ainda por muito tempo a discussão sobre essas questões complexas e difíceis da datação dos textos e das influências estrangeiras. Felizmente, a data precisa de um salmo não constitui, normalmente, um dado indispensável para desentranhar o seu significado essencial e alcance espiritual.

         Há títulos de salmos que sugerem o caráter, a natureza das composições. Avisam-nos que estamos diante de um poema acompanhado por instrumentos de cordas (mizimor, 57 vezes), de uma oração (tefillá, 86; 90; 102; 142), de um louvor (tehillá, 145), de um conto de amor ou epitalâmio (45), ou simplesmente de um canto (shir, 30 vezes). Certos temas resistem à tradução: maskil (32; 42; 44; 45; 52 – 55; 74; 78; 88; 89; 142), shiggayon (7), traduzidos, não sem hesitação, o primeiro por “instrução” e o segundo por “confissão”. Por vezes consideramos mais razoável transcrever sem traduzir (cf. 16; 56; 57; 58; 59; 60). A despeito de sua obscuridade, esses termos técnicos apresentam um interesse inegável: atestam a existência em Israel, de diferentes tipos de salmos. Esses indícios estimularam os exegetas na pesquisa dos “gêneros literários”. Seus trabalhos têm levado, no decurso dos últimos anos, a uma proliferação de classificações.

         Outras indicações referem-se à execução musical. Mencionam freqüentemente (55 vezes) o mestre de coro. É este o sentido provável (cf. 1Cr 15,21; 23,4) de um termo não compreendido nas antigas versões. Designam-se também diversos instrumentos de música: flautas (5), instrumentos de cordas (4; 54; 55; 61; 76), de oito cordas (6; 12), cítara de Gat (8; 81; 84), a menos que se trate de uma melodia específica. Para dar sustentação ou acompanhamento aos coros, utilizavam-se instrumentos diversos: shofar (trompa) e trombeta, harpa, alaúde e cítara, címbalos e tamborim. O Sl 150 enumera os elementos da orquestra sacra, “música de Yaohu” (1Cr 16,42). Por detrás de certas expressões enigmáticas, podem-se discernir indicações referentes à melodias a ser executadas com os cantos: cerva da aurora (22), os lírios (45; 69), não destruas (57; 58; 59; 75). Na nossa tradução, muitas vezes nos resignamos a respeitar o mistério dessas indicações (9; 46; 53; 56; 60; 80; 88).

         Finalmente, rubricas que associam expressamente certos contos a atos litúrgicos: o Sl 30 é destinado à dedicação da Casa. O Sl 92 diz respeito ao dia de sábado e o Sl 100 à ação de graças. Talvez convenha também associar a fórmula em memorial (38; 70) a uma função cultual específica. Quanto aos salmos das subidas ou para as subidas, não cabe dúvida de que pertenciam ao repertório dos peregrinos que “subiam” a Jerusalém.

 

 

         Os poemas. A coletânea dos “Louvores” foi inteiramente redigida em verso. Estes são facilmente perceptíveis na tradução, pois os versículos dos salmos, na sua apresentação atual, correspondem praticamente aos versos do texto hebraico.

         O mais das vezes, um verso se compõe de dois membros, às vezes de três. Obedece a um ritmo que, ao contrário do que ocorre nas prosódias grega e latina, não se fundem na quantidade, isto é, na combinação das sílabas longas e breves, nem no número das sílabas – como na versificação francesa clássica –, mas no acento tônico, como na poesia anglo-saxônica. O ritmo mais freqüente consiste em três acentos em cada membro do verso (3+3); por vezes esta cadência ternária cede lugar, no segundo membro, a uma cadência binária (3+2). Este ritmo quebrado ou defeituoso é muitas vezes perceptível na tradução, já que a segunda parte do verso é mais curta que a primeira. Mas os poetas hebreus desfrutam de uma liberdade muito grande na escolha e no arranjo dos ritmos. Há que reconhecer, também, que certos poemas se aproximam bastante da prosa.

         A presença de estribilhos que se repetem a intervalos regulares (42; 43; 46; 49; 59; 67; 80; 99; 107) permite agrupar um conjunto de versos equivalente a uma estrofe. A palavra sela, com que se depara dentro dos cantos, especialmente nos três primeiros livros da coletânea, talvez assinale, em certos casos, a divisão em estrofes. Traduzimos por pausa este termo, cuja significação permanece incerta. O mais das vezes, a unidade de tema ou de sentido justifica as seções internas, destacadas pela disposição tipográfica. Lugar especial cabe ao longo Sl 119, onde há tantas estrofes quantas são as letras do alfabeto hebraico. Este poema compõe-se de vinte e duas estrofes de oito versos, sendo que cada um deles começa pela mesma letra segundo a ordem do alfabeto (cf. Sl 9 – 10; 25; 37 etc.).

         O elemento mais indiscutível da salmodia hebraica, como da poesia semítica, é o paralelismo, uma espécie de balanceamento dos membros da frase, comparável a uma rima de pensamento. O paralelismo apresentava várias formas. Por vezes retoma-se a mesma idéia ou imagem utilizando expressões equivalentes; temos o paralelismo sinonímico:

        

Por que esta agitação dos povos,

         este rosnar inútil das nações?

 

         ...

         E agora, reis, sede perspicazes:

         Deixai-vos corrigir, juízes da terra (2,1.10).      

        

Outras vezes, o poeta procede por contraste ou oposição; temos então o paralelismo antitético:

        

Sim, os que ele abençoa possuirão a terra,

         e os que ele amaldiçoa serão suprimidos (37,22).

        

Já no caso de paralelismo sintético, a mesma idéia é expressa com um desenvolvimento do pensamento:

        

Cantai ao ETERNO um canto novo,

         cantai ao ETERNO, terra inteira (96,1). 

 

         Nem sempre o paralelismo é completo; embora seja considerado como característica distintiva da poesia hebraica, não o encontramos em toda parte. Aliterações ou assonâncias, freqüentes, mas de impossível tradução, estão assinaladas nas notas.

 

 

                  

As famílias dos salmos. O parentesco físico manifesta-se através de traços comuns: semelhanças externas do rosto, da fisionomia do andar; semelhanças no falar e no sotaque; comunidade de pensamento, de sentimentos, de problemas e de tradição. Entre famílias, estabelecem-se alianças que criam afinidades e mesclas. Também acontece o caso de parentes que não se parecem entre si... O mesmo ocorre com os salmos. Muitos deles apresentam entre si semelhanças de estrutura, uma fraseologia e uma tonalidade comuns, supõem situações idênticas ou análogas, tratam os mesmos temas, mesclam-se entre si para dar origem a poemas complexos. Falaremos, portanto, de “famílias” de salmos aplicando este conceito de parentesco com bastante flexibilidade. Uma classificação que pretenda agrupar todos os salmos deve necessariamente admitir margem para o provável e até para o conjetural. Com estas ressalvas, propomos três grandes famílias:

         1. Os louvores;

         2. As orações de pedido de socorro, de confiança e de ação de graças;

         3. Os salmos de instrução.

 

 

         1. Os louvores. Esta família conta muitos representantes, disseminados através de todos os livros da coleção. Segundo uma opinião amplamente difundida a maioria das “laudes” foram compostas para o serviço litúrgico e executadas por ocasião das festas de Israel. Há razões plausíveis para atribuir um ou outro desses salmos a uma solenidade precisa, mas, mesmo que seja tentador querer recompor o roteiro das diversas cerimônias litúrgicas, tais reconstituições são hipotéticas. O aspecto comunitário, fortemente acentuado, manifesta-se através de diálogos, coros, estribilhos, aclamações, responsórios, como Amém! Aleluia! A participação coletiva traduzia-se também por cortejos, procissões, espetáculos: danças, aplausos, genuflexões, prostrações.

         Os louvores costumam adotar a mesma estrutura. Desde os primeiros versos, o sinal é dado por um invitatório, de extensão maior ou menor, e às vezes por uma simples exclamação. Ora o salmista interpela-se a si mesmo (103; 104; 146), ora – o mais das vezes – lança seu apelo à comunidade, às diversas classes do povo, aos elementos da natureza (148) e até aos liturgos do culto celeste (29; 148). Este prelúdio ou introdução indica o tom, cria uma atmosfera de júbilo. Por vezes, desde o início, o poeta sugere os motivos de louvor que desenvolverá no corpo do poema. O salmo termina de maneiras distintas: retomada parcial ou total da introdução, resumo dos motivos, fórmula de bênção, oração ou desejo. Há variantes que quebram a uniformidade desta estrutura; são impostas pela diversidade das situações e também pelo fato de os louvores não terem todos a mesma destinação: referem-se a Yaohu, a Sião e ao Templo, ao rei.

         a) Os hinos que se dirigem ao ETERNO da Aliança formam um grupo compacto (8; 19; 33; 100; 103; 104; 111; 113; 117; 135; 136; 145 – 150; cf. 78; 105). Israel canta sua fé no Deus – Yaohu – único, eterno, todo-poderoso, onisciente, criador, ETERNO da história, sempre fiel ao povo por ele escolhido. Esses louvores são a resposta da comunidade à palavra do seu ETERNO, a reação de um povo que não cessou de encontrar na sua história o Yaohu vivo, seu guia, juiz, defensor, libertador. Salmos históricos, como 78 e 105, celebram em forma de hino os feitos, as “maravilhas” ou os “milagres” de Yaohu, tais como se nos manifestam através da história da salvação. Esses atos de Yaohu são palavras, sinais, epifanias, da mesma forma que as palavras divinas equivalentes a atos. O louvor que brota dos lábios de Israel não decorre de reflexões filosóficas, mas da experiência espiritual deste povo.

         Nas suas descrições da natureza, os salmistas são tributários das concepções vigentes em sua época; são muito mais testemunhas de sua contemplação religiosa do universo do que de uma visão poética do cosmo. Os fenômenos atmosféricos, a alternância das estações escondem e revelam as intervenções divinas. A natureza manifesta por transparência a presença do seu autor.

         Certos comentadores têm relacionado determinadas passagens dos louvores ao Criador com a literatura extrabíblica: O canto dá tempestade (29) recordaria os hinos em honra do BAAL cananeu; o início do Sl 19 conteria reminiscência das orações ao deus-sol; o cântico da criação (104) se inspiraria no hino egípcio ao deus Aton. Entretanto, os salmistas não plagiam; eles extraem seus modelos eventuais de RAS SHAMRA-UGARIT, da Babilônia e do Egito. Eles cantam o Deus único; se haurem de outras fontes, assimilam; sua alquimia a tudo transmuda: O ETERNO não se confunde com uma força cósmica; ele é antes de tudo YAOHU – o DEUS da História universal e da história de Israel.

         b) Os cantos do “Reino” (93; 96 – 99; cf. 47) assemelham-se aos hinos. No Saltério, foram agrupados devido às suas afinidades especiais, à sua tônica universalista, à aclamação que ressoa em vários deles: O ETERNO é rei! (93,1; 96,10; 97,1; 99,1; cf, 98,6). Celebram com entusiasmo a Yaohu entronado, rei e juiz de Israel, ETERNO dos povos. A origem de tais salmos lança raízes no culto (96,8-9; 99,5). A alegria transborda neles como em um dia de dedicação: Israel, os povos, as ilhas, todos os elementos do universo explodem em gritos de júbilo. Seriam esses salmos – que certos exegetas assemelham a cantos de entronização – utilizados por ocasião de uma liturgia determinada, como a festa dos Tabernáculos, de Jerusalém, do Ano Novo? É impossível responder com certeza a esta pergunta. Certos comentadores enfatizam pontos de contato com a última parte do livro de Isaías (cf. Is 52,7) e descobrem nesses cânticos novos (96,1; 98,1) perspectivas escatológicas. Contudo, no culto de Israel o presente atualiza o passado e antecipa o futuro: ao fazer reviver o passado, a liturgia reaviva a esperança.

         c) Os cânticos de Sião exaltam Jerusalém e seu Templo (46; 48; 76; 84; 87; 122; cf. 24,26; 132). Sião acumula títulos brilhantes: capital da dinastia davídica, metrópole religiosa, a mais santa das moradas do Altíssimo, cidade de Yaohu, cidade do grande rei. Esta ladainha de louvores dirige-se em última instância ao próprio ETERNO, que escolheu o monte Sião por residência e lugar de descanso. O Sl 132, talvez cantado para comemorar a dupla escolha da cidade e do seu rei, parece fazer eco ao relato de 2Sm 7. O autor do Sl 68 narra, num estilo épico crivado de reminiscências de antigos poemas, a cavalgada vitoriosa, ou melhor, a procissão solene da arca para o seu lugar definitivo. A nova capital, fundada sobre as montanhas santas, reinvidica o título de Extremo Norte (48,3) que a mitologia cananeu atribuía à morada de BAAL. E muito mais: o Sinai está no santuário! (68,18). A presença permanente do Todo-poderoso assegura a estabilidade, a segurança dessa cidade que se torna um refúgio invencível. Daí a confiança absoluta do povo, mesmo nas mais dramáticas situações. Os cânticos de Sião esboçam uma espécie de mística que idealiza a cidade, futura metrópole dos povos (87). Há exegetas que falam, neste contexto, de escatologia. Diremos uma vez mais que a liturgia antecipa: celebra no hoje cultual o desabrochar do amanhã, o futuro da cidade predestinada (cf. Is 2,2-4; 60; Mq 4,1-3; Zc 8).

         Inspiração idêntica anima o grupo dos salmos das subidas ou para as subidas (120 – 134). Segundo a Mischná, os levitas executaram esses cantos nos quinze degraus do Portal de Nicanor. Admite-se facilmente que os peregrinos utilizavam esses salmos ao “subir” a Jerusalém. Não obstante seu parentesco, esses poemas, muitas vezes bastante breves, e provavelmente de origem tardia, apresentam formas literárias diferentes, até híbridos; tratam de assuntos variados.

         d) Se os “salmos do Reino” celebram o Rei por excelência, o ETERNO, os salmos régios glorificam os monarcas do reino temporal (2; 18; 20; 21; 45; 72; 89; 101; 110; 132; 144). Por ocasião da consagração, da entronização e da coroação, do aniversário da subida ao trono, de um casamento de príncipe, antes de empreender uma guerra ou após uma vitória, tanto na provação como no êxito, desenrolavam-se cerimônias no palácio real e no Templo. Da diversidade das situações deriva a diversidade dos cantos: Homenagem ao rei e à sua dinastia, hinos, ações de graças, súplicas, desejos, oráculos etc. Esses cantos de circunstância oferecem, pois, uma ampla variedade no tocante à sua estrutura, seu fraseado influenciado pelo protocolo da corte, seus temas. Seu ar familiar lhes advém do ambiente de origem – a corte – e do personagem ao qual concernem – o rei. A honra prestada ao chefe da nação teocrática reverte para o ETERNO. Com efeito, o monarca é filho adotivo de Yaohu e seu herdeiro. Ungido do ETERNO, este “messias” ocupa o trono à destra do Altíssimo: Ele é o beneficiário da estabilidade e da perenidade do trono de David, ao mesmo tempo, o “trono da soberania do ETERNO sobre Israel” (1Cr 28,5). A promessa feita a David por intermédio de Natan aflora várias vezes nesses salmos (2,6-7; 45,7; 89,4-5.20-38; 132,10-12). Há íntima ligação entre os poemas régios, os cantos do Reino, os cânticos de Sião; todos esses salmos trazem em seu bojo uma promessa de plenitude: expectativa do Messias, espera do reino definitivo de Yaohu, expectativa de uma metrópole ideal.

 

 

         2. Orações de pedido de socorro, orações de confiança e de ação de graças. Assim como as “laudes”, estas orações contêm louvores ao ETERNO poderoso e justo, benfeitor supremo. As três categorias podem ser agrupadas em uma família específica. Sua origem comum é uma situação de angústia: O pedido de socorro, como a oração de confiança, acompanhada ou precede uma crise; a ação de graças descreve o desdobramento feliz dessa crise, agradece ao autor da libertação. Por vezes, em um único salmo (22; 30; 31; 54; 56; 61) vão muito intimamente associados à súplica, a confiança e o reconhecimento. Essas orações emanam ora de um indivíduo, originando-se mais da piedade pessoal, ora da comunidade congregada para uma cerimônia litúrgica (cf. Jl 1,33; 2,17). Aliás, não convém exagerar esta distinção entre o indivíduo e o coletivo, entre a piedade pessoal e o culto litúrgico. Mesmo quando ora a sós, o fiel não é um solitário, ele se reconhece solidário com o povo de Yaohu (cf. 25,22; 28,9; 61,7; 63,12; 69,36) e não é estranho ao culto (cf. 5,8; 28,2; 140,13-14). Além do mais, o “eu” do salmista muitas vezes é o eco de uma coletividade – por exemplo, no caso em que um personagem oficial, sacerdote ou rei, fala em nome de um grupo. E por fim, os salmos que originariamente exprimiam a devoção pessoal e espontânea de um fiel angustiado ou de um coração reconhecido, transformaram-se em orações comunitárias ao serem reunidos no saltério.

         a) Os pedidos de socorro, individuais ou coletivos, desenvolvem-se via de regra em um ritmo de quatro tempos: Invocação do nome de: YAOHU seguida de um brado de imploração, exposição da situação, súplica, certeza do atendimento. Esta estrutura admite variantes: O salmista acrescenta, omite, entremeias, inverte, repete. Uma efusão lírica e apaixonada não obedece a uma lógica rígida. Com bastante freqüência, deparamos com oráculos no decurso da súplica.

         As orações individuais ocupam, sozinhas, quase a quarta parte da coleção dos salmos (5; 6; 7; 13; 17; 22; 25; 26; 28; 31; 35; 36; 38; 39; 42; 43; 51; 54 – 57; 59; 61; 63; 64; 69; 70 [=40,14-18]; 71; 86; 88; 102; 109; 120; 130; 140 – 143). É mais freqüente as pessoas queixarem-se do que jubilarem! A descrição da aflição permite descobrir nas queixas dos que são atingidos por ela a condição concreta dos suplicantes, suas provações pessoais ou as de seu povo: penitentes, doentes, perseguidos, acusados, refugiados, exilados ou deportados, Na maior parte das súplicas agita-se uma turba de inimigos: Esses adversários se encarniçam sobre suas vítimas, sem poupar os doentes. Para designar seus perseguidores, os salmistas usam um vocabulário copioso, que embaraça os tradutores e os comentadores, que se esforçam por identificar esses personagens hostis. Pintam a atividade dos agressores recorrendo a traços mais ou menos convencionais, hauridos da literatura sapiencial, a metáforas numerosas e variadas: Guerreiros, caçadores equipados com redes e laços, bestas ferozes sedentas de sangue, leõezinhos, touros, búfalos, cães, serpentes etc. Os inimigos, para atingir seus objetivos, recorrem a todo tipo de procedimentos, em particular a palavras maldosas e malfazejas: Falsos testemunhos, calúnias, maledicências, maldições – práticas que fazem pensar nos malefícios das bruxas. Em suas tribulações, os salmistas invocam, a justiça de Yaohu e, às vezes, proferem imprecações inspiradas na lei do talião. Seus gritos de angústia nos lembram as queixas de Jeremias e de Jó.

         Para compreender estas orações, em particular as dos doentes e de todos os que se encontram em perigo de morte, há que situar-nos na perspectiva desses infelizes, no contexto religioso e social de sua época. Os salmistas não podiam gozar da felicidade senão na terra dos vivos (27,13). Esta concepção implica um conjunto de noções relativas à constituição física do homem, à sua vida, à sua condição no Além, às modalidades da justiça de Yaohu, ainda imperfeitamente conhecidas na época. A antropologia bíblica não coincide com a nossa; ela ignora, em particular, a nossa distinção entre corpo e alma. O temo hebraico que estaríamos tentados a traduzir por “alma” possui, na realidade, vários significados, que aparecerão na presente tradução: Garganta, goela, apetite, voracidade, sopro, vida; muitas vezes ele equivale ao simples pronome pessoal. Considerava-se a vida ou a vitalidade como uma força que varia de intensidade: As doenças, os estados dolorosos, as adversidades, os ataques dos inimigos diminuem a vida, submetem o homem ao domínio do inimigo por excelência, a Morte. Eis por que os doentes e os perseguidos se lamentam de descer à morada dos mortos, onde reinam as trevas, o silêncio e o esquecimento. Esta necrópole situada nas “profundezas da terra” é por eles denominada sheol, às vezes traduzido por “os ínferos”, isto é, os lugares inferiores, que não se devem confundir com o “Inferno”. A intervenção libertadora de Yaohu revigora os aflitos e os revivifica.

         Certos infelizes consideravam seus sofrimentos como uma punição dos pecados conhecidos ou ocultos. É natural que busquem na autoconfissão um meio de desarmar a cólera divina. A confissão das faltas atrai o perdão, e a graça divina proporciona a libertação. Sete orações (6; 32; 38; 51; 102; 130; 143) foram adotadas nas liturgias cristãs para formar o grupo dos “salmos penitenciais”. O Miserere (51) e o De profundis (130), que figuram entre essas súplicas, revelam uma grande maturidade espiritual.

         As orações coletivas de pedido de socorro (12; 44; 58; 60; 74; 79; 80; 83; 85; 90; 94; 108; 123; 137; cf. 77; 82; 106; 126), que apresentam a mesma estrutura que os individuais, pressupõe uma calamidade pública: Derrota militar, invasão estrangeira, massacres e destruições, profanação do Templo, opressão dos pequenos pelos grandes, dos justos pelos ímpios, tirania dos poderes estabelecidos. Israel brada sua angústia e, para apressar sua liberação, suplica ao ETERNO, multiplicando os motivos de intervenção: Alega sua inocência (44,18) ou confessa seu pecado (79,8-9), evoca os grandes feitos do passado (44,2-9; 74,2.12-17), em especial a Aliança (74,20). O que está em jogo é a honra de Yaohu (74,18; 79,10.12), sua fidelidade e lealdade a Israel (44,27). A causa do povo eleito identifica-se com a do ETERNO.

         b) A confiança, chave motora dos pedidos de socorro, ocupa o primeiro plano e constitui o tema predominante de alguns salmos (3; 4; 11; 16; 23; 27; 62; 121; 131; cf. 91). Estes cantos, de grande alcance espiritual, talvez provenham dos meios levíticos. Os salmistas cantam sua segurança na paz e na alegria (23,4-5; 27,1.3; cf. 3,7; 4,9; 131,2-3), sua intimidade permanente com Yaohu (16,5-11); professam sua fé (16,2.4-5; 62) e convidam seus compatriotas a imitar sua experiência. A alegria e a segurança proporcionadas pela comunhão com Yaohu são muitas vezes associadas ao Templo, no qual Yaohu se manifesta (11,7; 16,11), e de onde ele atende os fiéis que se refugiam junto a ele (3,5; 11,4; 23,6; 27,4). Os três salmos 115, 125 e 129 exprimem a confiança da coletividade.

         c) As orações individuais de ação de graças são relativamente pouco numerosas (9; 10; 30; 32; 34; 40,2-12; 41; 92; 116; 138; cf. 107). Já nos pedidos de socorro anunciava-se esboçava-se a ação de graças (22,23-32; 56,13-14). Atendida a sua prece, o fiel sobe ao Templo, acompanhado de seus parentes e amigos, para cumprir suas promessas. Parece, portanto, que o meio originário dos salmos de ação de graças, tanto individual como coletivo (66; 67; 118; 124; cf. 65; 68), foi a cerimônia litúrgica. A estrutura de tais salmos engloba, via de regra, os seguintes elementos. Depois de uma introdução ou proclamação que, com freqüência, desenvolve temas característicos dos hinos (9,3-12; 92,2-7; 118,5-18), o salmista evoca o perigo por que passou, a oração feita na provação, a inversão da situação graças ao socorro divino. O salmo fecha com um convite à assistência. O Sl 107 merece atenção especial. Nesta liturgia desfilam, sob a direção de um animador, quatro grupos de privilegiados: caravaneiros, retornados do deserto, cativos libertados, doentes curados, náufragos sobreviventes do mar. As estrofes, de composição idênticas – ações de graças em miniatura – comportam uma descrição, um invitatório e um estribilho. Com clareza ainda maior adivinham-se as pulsações da liturgia no Sl 118, que, sob a aparência de uma oração individual de agradecimento, exprime a gratidão de Israel para com seu Libertador.

 

 

         3. Salmos de instrução. Elementos sapienciais e didáticos estão presentes já nas duas grandes famílias de salmos precedentes. Mas certos salmos têm por objetivo especial instruir (cf. os títulos: maskil, “para ensinar”, 60,1). A pedagogia não está amarrada a uma única forma literária. Efetivamente, constatamos que os salmistas empregam diversos métodos: lições da história, exortações à maneira dos profetas, admonições litúrgicas, reflexões sapienciais sobre problemas de moral etc. A exemplo dos sábios, utilizam o gênero proverbial, esquemas escolares como o alfabetismo (37; 112; 119), que facilita a memorização e significa a intenção do salmista de tudo dizer. Vê-se, portanto, que essa família de salmos apresenta uma unidade bastante vaga; o traço comum é, no caso, a intenção pedagógica.

         a) Três salmos (78; 105; 106) evocam longamente a história sagrada. Orquestram os temas principais que o compõem: tradição patriarcal, dominada pela Promessa e pela Aliança (105); Êxodo, precedido e acompanhado por maravilhas; marcha no deserto e revelação do Sinai; entrada na posse da herança (78; 105; 106). Os salmistas não se limitam a enumerar fatos brutos; desentranham o significado dos fatos, os títulos de glória do ETERNO (78,4; 105,1.5), os testemunhos da fidelidade, da lealdade, da paciência e da misericórdia de Yaohu. Essa visão retrospectiva determina atitudes práticas, como ensina o Deuteronômio.

         b) A preocupação didática aparece também em certas “liturgias” (15; 24; 134; cf. 91; 95). Uma cerimônia, por exemplo, a chegada à porta do santuário (cf. 24,7; 118,20), propicia a ocasião de lembrar as condições exigidas para entrar no Templo, comparecer perante Yaohu e permanecer na sua presença.

         c) Exortações proféticas (14; 50; 52; 53; 75; 81; cf. 95), entremeados de oráculos, de promessas e ameaças, no estilo deuteronômico (81), insistem na piedade autêntica e exigências da Aliança, denunciam a perversão e a impiedade (14; 52; 75). O Sl 50 condena a crença popular em uma eficácia automática dos sacrifícios, independente das condições morais: O ETERNO não é devedor do homem: O homem é devedor de Yaohu.

         d) Um último grupo merece plenamente o título de salmos de instrução (1; 37; 49; 73; 112; 119; 127; 133; cf. 128; 139). Entre os temas abordados nesses poemas sapienciais, a Lei ocupa lugar privilegiado (1; 119; cf. 19,8-14). Meditada com amor, ela é uma fonte inesgotável de benefícios. Os salmistas proclamam a felicidade do justo, a ruína do mau; ventilam o problema da retribuição. Os fatos nem sempre se ajuntavam ao ensinamento tradicional: ímpios são bem-sucedidos, justos fracassam. Anomalia angustiante para quem crê. Diante disto, alguns salmistas bradam quase em desespero, passam por uma verdadeira crise de fé (73). Mas, sob o aguilhão da provação, depuram suas idéias e sentimentos. Estariam com isso pressentindo uma retribuição que, no Além, restabelecerá o equilíbrio inexistente na terra? Talvez se possa afirmar que esperanças nesta linha transparecem em algumas afirmações ainda imprecisas (49,16; 73,24; cf. Gn 5,24; 2Rs 2,1-11).

 

 

         O Saltério, no passado e no presente. Por volta de meados do século II a.C., o texto hebraico dos Salmos foi traduzido para o grego, para uso dos judeus da Diáspora – é a chamada versão dos Setenta, ou Septuaginta. O Psaltérion, encaixado entre o livro de Jó e os Profetas, contém um salmo suplementar (Sl 151). A numeração dos poemas não é totalmente idêntica à do texto hebraico masorético. Com efeito, por duas vezes ocorre o caso de um salmo, único no texto hebraico, estar dividido em dois na versão grega (Sl 116 e 147). Inversamente, e também aqui por duas vezes, dois salmos da coletânea hebraica (9 e 10; 113 e 114) correspondem a um único canto da Septuaginta. Donde uma defasagem na numeração. O quadro abaixo evidencia estas diferenças.

HEBRAICO.            GREGO e VULGATA.

1 – 8                    =           1 – 8

9 – 10                            =           9

11 – 113              =           10 – 112

114 – 115            =           113

116                      =           114 – 115

117 – 146            =           116 – 145

147                      =           146 – 147

148 – 150            =           148 – 150

 

 

         Adotamos aqui a numeração hebraica.

         Salmos que, na Bíblia hebraica, eram “órfãos”, desprovidos de título, na Bíblia grega aparecem enriquecidos de dados novos: 84 poemas são atribuídos a David, outros a diferentes autores a Jeremias, Ezequiel, Zacarias, Ageu, aos filhos de Ionadab, por vezes com informações inéditas sobre as circunstâncias de composição. A Septuaginta interpretou a seu modo as indicações obscuras dos títulos hebraicos. Quanto à sua versão, ela, às vezes, fornece, apesar das alterações, a possibilidade de reconstruir, em certos pontos, um texto que parece mais correto. A Septuaginta manteve-se como a versão canônica das Igrejas de língua grega, constituindo também a base para traduções oficiais de várias Igrejas orientais. Extratos de três outras versões gregas, elaboradas por Áquila, Símaco e Teodocião, datadas de meados do século II d.C., chegaram até nós mercê das citações dos Padres gregos e, sobretudo através do que nos sobra da Héxapla de Orígenes (início do séc. III).

         A coletânea dos “Louvores” ocupava lugar de honra em Qumran. Com efeito, exumaram-se das grutas do Deserto de Judá fragmentos, salmos isolados e um grande rolo dos Salmos provenientes da gruta 11. Além disso, os Hinos compostos em Qumran permitem a comparação com os salmos canônicos: Este confronto ressalta a originalidade dos textos bíblicos. Israel, através da sua história muitas vezes tormentosa, continuará a recitar, a meditar e a cantar o Saltério, por ocasião de suas festas nacionais e religiosas, no ritual sinagogal, no lar – tanto que se pôde escrever que os judeus nascem com este livro nas entranhas. O Targum dos Salmos, tradução e paráfrase em aramaico remonta, em sua forma oral, a uma tradição relativamente antiga e, sob este aspecto, merece ser consultado pelos tradutores modernos, valendo o mesmo para os grandes comentários dos rabinos medievais, como Ibn Ezra e Rashi.

         No Novo Testamento, os salmos ocupam um lugar privilegiado: são citados mais de 100 vezes, Yaohushua, para demonstrar a grandeza absoluta do Messias, argumentando a partir do Sl 110 (Mt 22,41-46); recita com seus discípulos os cantos do “Hallel” que encerravam a ceia pascal (Mt 26,30); na cruz ele pronuncia o início do Sl 22 (Mt 27,46); morre murmurando um versículo do Sl 31 (Lc 23,46). O hábito de recitar e de cantar salmos, atestado nas primeiras comunidades cristãs (1Co 14,26; Ef 5,19; Cl 3,16; Tg 5,13), propagou-se cedo na devoção particular e na liturgia oficial.

         Desde o fim do século I da nossa era ou no início do século II, o Saltério foi traduzido para o siríaco. Conhecemos esta antiga versão sob o nome de Peshitta: Ela reflete um texto hebraico próximo ao nosso hebraico masorético e apresenta, para numerosos salmos, títulos específicos. Um pouco mais tarde, pelo fim do século II, aparecem na África e em Roma as mais antigas versões latinas. São Jerônimo, no século IV, entregou-se à tarefa de aprimorar a tradução latina calcada sobre um texto grego: Corrige-a com base no grego da Septuaginta (“saltério romano”); posteriormente retoma seu trabalho de revisão, utilizando desta vez a Héxapla de Orígenes (“saltério galicano”); finalmente apresenta uma tradução diretamente do hebraico (psalterion iuxta Hebraeos). É a segunda revisão de Jerônimo que faz parte da Vulgata latina; este texto, após novas e interessantes correções, foi publicado e incorporado, em 1971, à “Liturgia das Horas” do rito romano.

         Nas notas desta tradução, o leitor deparará com as variantes mais características das diversas versões: Grega, Aramaica, Síríaca, Áquila, Símaco, Teodocião, Jerônimo; a Vulgata é citada somente quando seu texto difere da Septuaginta.

         A esta longa história, aqui esboçada, corresponde toda uma história espiritual. Efetivamente, gerações inteiras de crentes, judeus e cristãos de todas as confissões, têm inspirado sua oração e sua vida nos salmos. Esses textos bíblicos têm suscitado, desde a era patrística, homilias e comentários; têm animado a piedade individual e coletiva; têm provocado pesquisas exegéticas. De todos os livros do Antigo Testamento, o Saltério foi o primeiro a difundir-se em francês (pelo ano de 1100), e a partir do século XVI as traduções e as paráfrases em versos se têm multiplicado. Assinalemos, em particular, a célebre versão alemã de Lutero. A renovação litúrgica levada a efeito nas Igrejas cristãs favorece a difusão da coletânea dos “Louvores”. É certo que a piedade autêntica brota do coração e não se nutre de estereótipos literários. Mas o Saltério não nos oferece orações já feitas; oferece-nos orações a ser feitas, sugere-nos “cantos novos”. {Ver mais adiante, o termo, “cristão”. E, o “REMANESCENTE...”}. ANSELMO ESTEVAN.

        

 

 

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO AO LIVRO DE:

 

 

PROVÉRBIOS

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

 

 

         Visão geral

         Autores: Vários, incluindo Salomão, Ezequias, Agur e Lemuel e outros.

         Propósito: Oferecer um recurso para o ensino da sabedoria aos jovens, em primeiro lugar para a família real e, em segundo lugar, para todas as outras famílias em Israel.

         Data: 960-686 a.C.

         Verdades fundamentais:

         Yaohu é a fonte de toda a sabedoria e ele a revelou para que os seres humanos a aprendam.

         A sabedoria humana pode ser obtida apenas no contexto da reverência a Yaohu.

         Os jovens precisam da instrução de pais e mães mais velhos e mais sábios.

         Os líderes do povo de Yaohu, em especial, devem ser instruídos nos caminhos da sabedoria.

 

 

 

Propósito e características

         Enquanto os livros históricos relatam o desenvolvimento do reino de Yaohu por meio das alianças com Israel, a literatura sapiencial da Bíblia não menciona explicitamente a eleição de Israel ou suas alianças e trata apenas em raras ocasiões dos detalhes históricos da fé Israelita. Não obstante, pode ser facilmente integrada à fé histórica de Israel mediante o seu apelo comum ao “temor do ETERNO” (cf. Dt 6,5; Js 24,14; Pv 1,7). “Yaohué o nome de Deus que expressa o seu compromisso pessoal com Israel (Gn 12,8; Êx 3,15; 6,2-8). “Teme-lo” significa sujeitar-se à sua vontade revelada, quer esta seja expressa por Moisés ou por Salomão, motivado pela convicção de que ele cumprirá as suas promessas de vida para os fiéis e as suas ameaças de morte para os infiéis. Moisés, Salomão e os profetas procuraram mostrar a sabedoria de Yaohu. Embora a teologia de Provérbios complemente a visão histórica unificada de outras partes do Antigo Testamento, Provérbios se concentra mais na vida cotidiana do que na Histórica, mais nas coisas comuns do que nas extraordinárias, mais no indivíduo (ainda que não isolado do contexto das relações sociais) do que na nação, mais na experiência pessoal do que na tradição sagrada.

 

 

 

       CRISTO EM PROVÉRBIOS.

       Como a Lei de Moisés, Provérbios dá testemunho de Cristo retratando a sua pessoa e a sua obra. Vemos na lei a pessoa justa e santa e a obra do filho de Abraão que herdaria as bênçãos da aliança de Yaohu e seria o seu mediador para todas as nações. Em provérbios (e na literatura sapiencial como um todo), vemos o discernimento e o trabalho do discípulo sábio. Somente o ETERNO – “SALVADOR” cumpre plenamente essa visão. Provérbios, bem como a literatura sapiencial em geral, também revela a semelhança na qual todo o verdadeiro Israel será conformado pela graça por meio da fé: A semelhança do SALVADOR, a encarnação da sabedoria de Yaohu (1Co 1,24.30; Cl 2,2-3).

 

 

 

         PROVÉRBIOS: O livro dos Provérbios {O termo hebr. Designa um procedimento literário que consiste essencialmente numa “comparação” [como, aliás, os gregos o traduziram] ou numa sentença construída de forma a evidenciar a simetria de duas idéias, de duas imagens antitéticas ou complementares (cf. Pv 26,7). A tradução latina, a Vulgata, traduziu-o por “parábolas”, enfatizando o aspecto enigmático e didático da maioria dos Provérbios. Trata-se, em resumo de “pensamentos” dos Sábios, na maior parte do livro expressos em dísticos, o que até hoje caracteriza os nossos provérbios.}, é uma coletânea de textos de diferentes origens e datas. Melhor dizendo, é uma coletânea de coletâneas. Pertence à literatura sapiencial ou gnômica, gênero literário que floresceu, desde remotas eras, no Crescente Fértil e no Egito. Existe mais que parentesco entre nossos Provérbios e seus homólogos sumérios, assírio-babilônicos, cananeus, hítitas ou egípcios, como se pode ver pelo tratamento dos mesmos temas, com expressões iguais e, às vezes, até empréstimos diretos. Tudo isso, mais a atribuição de duas pequenas coletâneas a sábios estrangeiros (Pv 30,1-14 e 31,1-9), comprova a existência de uma vida literária internacional, à qual Israel não se furtava.

         O título, chave dos Provérbios. No seu conjunto, o livro dos Provérbios não representa uma literatura cosmopolita, apesar do parentesco e dos empréstimos diretos ou indiretos de seus homólogos. Na verdade, a coletânea é inteiramente atribuída a “Salomão, filho de David, rei de Israel”, sendo o nome engrandecido pelos dois títulos que o determinam. Por que “Salomão”? Porque só se toma emprestado de quem tem, e porque esse rei controvertido era conhecido por seus dons políticos e literários e como autor de inúmeras sentenças (cf. 1Rs 3,16-28; 5,9-14; 10,1.8 – 9.23).

         O compilador desta coletânea julgou essencial frisar que Salomão era “filho de David”, um “davídida” e, além do mais, “rei de Israel”.

         Ao apresentar o autor como “rei de Israel” referia-se à concepção, comumente admitida em todo o Oriente antigo, da origem real de toda sabedoria, concepção de significado ainda maior para o israelita. Não era o “ETERNO” o “rei de Israel” por excelência? Podia, pois, o rei ser considerado “oráculo de Yaohu” (2Sm 14,18-20; Pv 16,10-15: É certamente intencional a ligação entre essa breve seção sobre o rei e a seção precedente, 16,1-9, referente a Yaohu). Claro que poderia haver maus soberanos, infiéis à sua função “profética”, e os Provérbios têm ciência disso (28,16; 29,4)!

         Ao qualificar o autor de “filho de David”, o compilador sacralizava um livro cujo conteúdo poderia restringi-lo à esfera do profano. Ora, David era o ungido do ETERNO, o portador da Aliança e das Promessas. Disso nada falam os Provérbios. Mas a sua sabedoria – pretensamente chancelada por um davídida – podia, por isso, parecer resgatável numa visão especificamente religiosa. Razão por que, desde o título, o leitor é sensibilizado para esse ponto, confirmado, aliás, pela maior parte do livro.

         Isto significava, portanto, que os 31 capítulos a seguir fazem parte integrante da Revelação divina, que se exprime através da história do povo de Israel. Apresentam eles uma modalidade bastante “humanista” dessa expressão e podem ser até considerados parte eminente dela, enquanto avalizados por um grande rei de Israel.

 

 

         Organização do livro. A) Abre-se o livro com breve introdução geral (1,2-7), em que se explícita o conteúdo e se justifica o título. A coletânea visa transmitir uma experiência moral e religiosa, que incentivará as gerações jovens e menos jovens a um procedimento correto e sensato, nas diversas circunstâncias da vida. Tal experiência é consignada no ensinamento dos mestres do passado e do presente, constituindo, na plena acepção da palavra, uma educação. Fique, porém, bem claro que o ETERNO está no ponto de partida dessa experiência.

         B) A seguir, vem o livro propriamente dito, com suas nove coletâneas de tamanho variado. Essa divisão, hoje comumente aceita, nada tem de tradicional. Usamo-la aqui apenas para maior clareza e compreensão. Com o mesmo objetivo, acrescentamos os subtítulos.

         Distinguem-se, pois, as seguintes seções:

1,1.8 – 9,18: exortações do pai-educador, prevenindo conta as más companhias e a “libertina”, mescladas com o elogio da Sabedoria, que aí aparece personificada, tomando a palavra (1,20-33); 8,22-35). Em antítese, aparece a Insensatez, num díptico sabiamente equilibrado (9,1-6 e 9,13-18).

         II. 10,1 – 22,16: primeira coletânea salomônica de 376 sentenças sobre a vida moral. Caracteriza-se essa seção por forte inspiração religiosa, sendo, o nome de Yaohu –, o ETERNO, freqüentemente repetido. (YHWH). Os críticos, em geral, concordam em reconhecer aqui materiais dentre os mais antigos da compilação.

         III. 22,17 – 24,22: primeira coletânea dos Sábios. Inclui, entre outros elementos, uma seção muito próxima da Sabedoria egípcia de Amenêmope (22,17 – 23,14) e uma expressiva sátira da embriaguez (23,29-35).

         IV. 24,23-34: segunda coletânea dos Sábios (anunciada no v. 23). Ressalte-se aqui o retrato do preguiçoso (vv. 30 – 34).

         V. 25 – 29: Segunda coletânea salomônica. Composta de 127 máximas, organizadas, o mais das vezes, em dísticos regulares, como a primeira coletânea salomônica. Trata-se de materiais tão ou mais antigos que os da primeira coletânea.

         VI. 30,1-14: palavras de Agur, sábio não-israelita.

         VII. 30,15-33: série de provérbios numéricos, dispostos em enumeração progressiva de tipo x+1 (por exemplo: há 3... e 4...). O mesmo processo aparece no primeiro capítulo do profeta Amós.

         VIII. 31,1-9: palavra de Lemuel, segunda coletânea de pensamentos de um sábio não-israelita.

         IX. 31,10-31: célebre poema em louvor da mulher de valor. “Fecho de ouro” da obra, corresponde dignamente à figura da Sabedoria apresentada no cap. 9.

 

 

         Sabedoria e sábios. Sem dúvida, a Sabedoria apresentada nos Provérbios é solidária com Yaohu. Ela participa da obra da criação (8,22-31; 3,19-20). Por isso, é apresentada como a fonte eminente da vida, que ela preserva do mal e da morte, e conduz ao temor do ETERNO e a todos os bens daí decorrentes.

         Ela, porém, nunca aparece nos Provérbios de forma desencarnada. Após sua apresentação “junto de Yaohu”, no cap. 8, é personificada como dona de casa no cap. 9. Para adquiri-la, exigem-se algumas disposições morais: cumpre estar disponível e atento. No fundo, é o homem todo – espírito e corpo, religioso e profano – que será “sábio”, dentro da visão bíblica, que não dissocia o ser humano.

         Que vem a ser o sábio? Percorrendo a Bíblia, vê-se que o termo designa quem se distingue em atividades as mais diversas, artísticas ou técnicas. Poderá ser um marinheiro experimentado (Ez 27,8), escultor, entalhador, ourives (Êx 31,6; Jr 10,9), tecelã (Êx 35,25) e até carpideira profissional (Jr 9,16) etc. Serão chamados “sábios” particularmente os especialistas em política, ou seja, os escribas, auxiliadores e conselheiros dos reis (Is 29,14), até mesmo quando, segundo lamentava Jeremias, houvessem perdido toda sabedoria (Jr 8,8; 9,11).

         São naturalmente “sábios” os que exercem alguma atividade pedagógica, pois a formulação do seu ensino – ensino vivenciado –, como o vemos no livro dos Provérbios, testemunha uma técnica que a tradução deixa entrever perfeitamente.

         As qualidades de artesão ou artista levaram, por outro lado, a atribuir essa coletânea a profissionais da pena, os “escribas” (nome genérico de funcionários públicos que constituíam o organograma dos vários “ministérios”, como os chamaríamos hoje). Gozavam eles de ócio e liberdade para se dedicar às letras. É aos escribas de que se trata em 25,1 que se deve atribuir a compilação de tudo o que outros anteriormente exprimiram. Deve-se admitir também que esses funcionários letrados, por força de seus contatos com o estrangeiro, anotaram passagens de moralistas não-israelitas (Agur, Lemuel), e imitaram outros (sabedoria de Amenêmope). Suspeita-se – na ausência de documentação suficiente – que também a sabedoria Cananéia e sua formulação tenham exercido influência. É bastante provável que as numerosas passagens a respeito do rei, da função do “príncipe” e dos conselheiros tenham sido incluídas nesta coletânea graças a esses escribas, tenham ou não sido eles os seus autores.

 

 

         A fé de Israel, nos Provérbios. O “temor do ETERNO” é o fundamento da sabedoria e, por conseguinte, da pedagogia que a ela conduz. Por isso, os nossos sábios comungam o mesmo pensamento dos que, em registros diferentes, viviam e pregavam o “temor do ETERNO”: Os pregadores levíticos e deuteronômicos, os profetas, e os salmistas e, mais genericamente, quantos explicavam e preconizavam a Lei de Moisés. São muitos os indícios de tal comunhão.

         São bastante claras as exortações racionais da primeira parte do livro. O tema sempre recorrente é o “esquema deuteronômico da opção” (Dt 11,26-28; 30,15-20): escolhe a vida e os caminhos que a ela conduzem, evitar a morte e o resvaladouro que a ela conduz.

         São muito freqüentes duas imagens-chave, que assinalam a profunda concordância com a tradição de Israel, expressa na Lei e nos Profetas: A Árvore da vida e a Fonte da vida (3,18; 10,11; 11,30; 13,12.14; 14,27; 15,4), que mostram como se entendia e se vivia a narrativa do Paraíso.

         A Cidade onde a Sabedoria profetiza é Jerusalém (1,21; 9,3). Mas Jerusalém é impensável sem a Terra por excelência, terra confiada aos homens retos, donde os maus serão extirpados (2,21-22; 10,30; cf. Dt 4,26). Prepara-se assim a formulação do enraizamento da Sabedoria-Torá em Sião.

         O acontecimento primordial do Sinai (a entrega da Lei, das “Dez Palavras” nas tábuas de pedra) está integrado também à experiência vivida e transmitida pelos sábios educadores dos Provérbios, em ligação com o profetismo. Como os profetas, eles querem gravar o ensinamento na “tábua do coração” (3,3; 7,3, paralelo a Jr 31,33).

         Por fim, vale ressaltar duas referências à fé de Israel: Uma, à Aliança, que segundo Pv 2,17, é rompida quando se rompe a comunidade conjugal; a outra, em 5,14, que, com dois termos característicos, evoca a “comunidade sacral”.

 

Data e autores. Numa introdução sucinta, não se pode dar a devida importância à questão crítica das datas atribuídas às diversas partes do livro, à identidade dos autores e a outras questões da mesma ordem. Pode-se apenas afirmar que a base da coletânea remonta às origens da vida comunitária de Israel. Como muitos outros livros do Antigo Testamento, a transmissão oral certamente precedeu a sua codificação escrita. Ora, esta deve ter sido realizada bem cedo nos círculos dos escribas da corte, onde reinava a preocupação de formar administradores, espíritos cultivados. Contudo, essa preocupação administrativa aparece nos Provérbios menos nitidamente que nos mais antigos Ensinamentos egípcios. A época real deve ser considerada o berço privilegiado dessas coleções de sentenças. É certo, por outro lado, que a época pós-exílica também viu sérios esforços de organização e de empréstimo das sabedorias vizinhas.

         Recentemente, porém, foram contestados os critérios literários – tidos por muito tempo como convincentes – que atribuíam a este período mais recente os nove primeiros capítulos de Provérbios. Por certo, Israel burilou seus Provérbios durante longo tempo, tanto quanto os seus Salmos.

 

As traduções. O tradutor moderno de Provérbios defronta-se com inúmeras dificuldades. Oferece-lhes a crítica diversas saídas, como o trabalho de simples crítica textual, o recurso à elucidação das literaturas da mesma família lingüística. Não deve esquecer que, muito antigamente, judeus que dominavam com perfeição o hebraico já haviam traduzido este livro para correligionários de língua grega. Mas a consulta a essa antiga tradução pode ser decepcionante. Por razões dificilmente discerníveis, os tradutores gregos do século I a.C., mais parafrasearam do que traduziram. As sucessivas versões coptas, siríacas e latinas antigas não melhoraram a obra. A tradução latina de Jerônimo se apegou mais ao texto hebraico lido no século IV d.C., mas também não resolveu as dificuldades do tradutor atual. Fiel a diretrizes do nosso trabalho ecumênico, a presente tradução, que se pretende de leitura acessível e de clara compreensão, evitou soluções aventurosas. Confiando na inteligibilidade do texto hebraico atual.

INTRODUÇÃO AO LIVRO DE:

 

 

 

ECLESIASTES

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

 

 

         Visão geral

         Autor: Salomão ou um sábio desconhecido na corte real.

         Propósito: Demonstrar que a vida vista unicamente a partir da perspectiva humana realista resultará em pessimismo, e oferecer a esperança por meio da obediência humilde e da fidelidade a Yaohu até o dia do julgamento final.

         Data: 930-586 a.C.

         Verdades fundamentais:

         Quando o que nos resta são os esforços e a perspectiva humana, a vida parece não oferecer esperança ou significado.

         Os seres humanos não conseguem nem mesmo começar a sondar a sabedoria divina que sustenta e controla as coisas.

         Quando as limitações humanas são reconhecidas, o fiel passa a ter uma visão divina da vida pela renovação da sua reverência a Yaohu e fidelidade aos seus mandamentos.

         No julgamento final, Yaohu, ao julgar todas as coisas como boas ou más, colocará fim a todas as anomalias da vida que nos deixam perplexos.

 

 

 

         Propósito e características

         O título “Eclesiastes” deriva da Vulgata (a tradução latina da Bíblia) e da Septuaginta (a tradução grega do AT) da palavra hebraica qoheleth, que está traduzida como “pregador” possivelmente significando “o líder na assembléia”.

         Eclesiastes trata de como o povo de Yaohu deve viver na terra diante das dificuldades e enigmas da vida. Mas o livro não faz uma apologia aos que são ignorantes de Yaohu ou que são rebeldes a ele; é um sábio conselho para aqueles que conhecem a Yaohu, mas que às vezes sentem-se perplexos diante de seus caminhos. Nesse aspecto, Eclesiastes é semelhante ao livro de Jó. Os diálogos e monólogos de Jó buscam a compreensão da sabedoria de Yaohu dentro das circunstâncias do sofrimento de um homem inocente, mas Eclesiastes é o mais filosófico em sua abordagem e fala da condição de todos os seres humanos.

 

 

 

         CRISTO EM ECLESIASTES.

       Este livro relaciona-se com Cristo e com o Novo Testamento de várias maneiras. Primeiro, em sua primeira vinda, Cristo, que é a sabedoria de Yaohu (1Co 24,30), revelou a sabedoria àqueles que o seguiram (Cl 1,9: 2,23; 3,16). Por meio da fé em Cristo temos acesso à sabedoria de Yaohu (Tg 1,5) além do conhecimento que tiveram os homens do Antigo Testamento. Do mesmo modo que Eclesiastes faz um chamado ao temor e á obediência (12,13), o Novo Testamento ecoa esses temas (At 6,7; 9,31; 2Co 5,11; 9,13; 10,5; 2Ts 1,8; 1Pe 1,2; 2,17; Ap 14,7; 15,4; 19,5) em seu chamado para que o evangelho de Cristo seja aceito como a própria sabedoria de Yaohu (1Co 1,21-24; Cl 1,9-12.28; Tg 3,13-17). Segundo, mesmo com a vinda de Cristo, Eclesiastes nos faz lembrar que os eleitos de Yaohu ainda vivem como forasteiros neste mundo (1Pe 1,1). Apesar de termos sido perdoados de nossos pecados e vivificados em Cristo, ainda vivemos entre profundas frustrações e tensões até que Cristo coloque um fim à presente era. Enquanto isso não acontece, os enigmas da vida às vezes são tão grandes que não sabemos nem mesmo como orar, mas podemos ter confiança em meio às nossas lutas por saber que o Espírito de Cristo, que conhece a mente de Yaohu, ora por nós (Rm 8,18-23) – RUACH HAKODESH. Terceiro, o Novo Testamento nos garante que o julgamento final mencionado nesse livro (12,14) acontecerá quando Cristo retornar em glória (Ap 19). Quando isso acontecer, a boa sabedoria de Yaohu, tantas vezes oculta da vida humana por ora, será claramente revelada.

 

 

         No que acredito – Anselmo Estevan.

 

         O PAI: Yaohu Ul, o Todo Poderoso!

         O FILHO: Yaohushua, o Messias! (CHRISTÓS – O UNGIDO)!

         O ESPÍRITO: “Rúkha – Yaohushua” (Espírito de Yaohushua);

         O Mês_re, O Consolador!

 

         As Escrituras mencionam o Espírito de três formas:

 

         “Rúkha hol – Rodshua” (Espírito Santo),

         “Rúkha – Yaohu” (Espírito de Yaohu), e

         “Rúkha – Yaohushua” (Espírito de Yaohushua).

 

 

 

         ECLESIASTES. Este escrito é atribuído a Salomão, filho de David (1,1). Os dois primeiros capítulos aludem claramente à vida deste rei (cf. 1Rs 3ss.). Mas tanto a linguagem, próxima do hebraico rabínico, como o conteúdo, crítica severa do sistema que vê a retribuição do justo na vida temporal, convidam a situa-lo muito depois da volta do Exílio. Com certeza, foi escrito antes da época dos Macabeus, pois em Qumran (gruta 4) foram descobertas algumas linhas dele, copiadas em meados do séc. II a.C.

         O título hebraico Qohélet, aportuguesado Coélet (1,1.2,12; 7,27; 12,8-10), talvez venha de qahal, “a assembléia”, e evoca dois importantes episódios da vida de Salomão: quando ele recebeu, em Guibeon, a sabedoria, “no meio de um povo numeroso” (1Rs 3,8), e quando abençoou a assembléia, na dedicação do Templo (1Rs 8,2.14). O termo grego correspondente, Eclesiastes, designa quem preside uma assembléia ou lhe dirige a palavra; daí, ser chamado também O Pregador. O epílogo ou apêndice (12,8-14), talvez redigido por algum discípulo, parece aludir a certas discussões entre os judeus sobre a origem e autoridade deste livro desconcertante. Certo é que era lido todos os anos, na festa das Tendas, em setembro/outubro.

         O caráter compósito deste livro dificulta sua compreensão. Contradições aparentes levaram até a pensar em vários autores ou revisores. Na verdade, porém, trata-se de um único autor que discute consigo mesmo e cita, vez por outra, opiniões já veiculadas, criticando-as.

         A um prólogo (1,3-11) sobre o retorno cíclico das coisas seguem-se três partes. Na primeira, o Eclesiastes traz a autocrítica de Salomão (1,12 – 2,26). Enquanto o Cântico dos Cânticos celebrava com entusiasmo a pompa do rei insigne, seus excessos e amores, o Eclesiastes conclui pela inutilidade dos esforços do ser humano, até mesmo dos mais dotados, para fugir à sua condição. Que resta após o gozo? Um gosto de cinzas na boca. Vaidade das vaidades, tudo é vaidade, diz Qohélet!

         Na segunda parte (3,1 – 6,12), o Eclesiastes mostra aspectos negativos e limitações da realidade humana, a começar pelo contraste entre a duração infinita e os instantes efêmeros. Essa relatividade, o sábio a apreende e assume como autêntico dom de Yaohu. Daí a sua angústia filosófica diante do mistério do destino humano (3,22; 6,12; 7,14; 8,7; 9,12; 10,14). Para que viver (1,3; 2,22; 3,9; 5,15)? Quem o sabe? Pode o homem escapar ao absurdo da própria existência? Sobrará dela só o tédio de um fracasso completo? Entre o suicídio e a fome do prazer, o Eclesiastes buscará encontrar uma atitude realmente humana.

         A terceira parte (7,1 – 12,7) principia por uma série de sete reflexões, em forma comparativa, como a segunda parte, que começava pela retomada inicial, quatorze vezes, da expressão um tempo para... E um tempo para... A seguir, o autor trata da sabedoria e de suas relações com a justiça, a mulher, o exercício do poder, o segredo do destino humano, o tema clássico da justiça imanente, as relações sociais e suas anomalias flagrantes num mundo perverso e cruel. Como antes dele o autor do livro de Jó (cf. 9,22; 21,7 etc.: Também Sl 37; 49; 73; Jr 12,1; Ml 3,14-15), o Eclesiastes reage ao conformismo dos sábios e à retórica vazia deles exortando-nos ao engajamento existencial. São todos os que falam demais, porque ignoram as coisas mais simples (10,14). O Eclesiastes denuncia de modo geral as posições extremas que, paradoxalmente, se equivalem na ineficácia. Nem pessimista, nem otimista, nem oportunista, ele prima pelo realismo e pela lucidez. Vive a paixão da verdade e da autenticidade. Para ele, viver é bom. É dádiva divina a ser acolhida com alegria, sem ares de anjo nem de animal (cf. 3,13; 5,17; 8,15; 9,9).

         O Eclesiastes multiplica os paradoxos em função de implacável dialética, votada, à primeira vista, a desembocar apenas em oposições irredutíveis. Não admira que ele não tenha feito escola. Se for possível aproximar dele certos salmos (39; 62; 88; 90), o Sirácida (Eclesiástico), alguns decênios após o Eclesiastes, representa uma volta às idéias tradicionais, embora não desconheça seu antecessor (cf., sobretudo Sr 14 – Livros Apócrifos). É possível que (Sb 2,1-10 – Livros Apócrifos), se inspire no Eclesiastes, mas na direção, ou seja, na nova perspectiva de uma vida futura com Deus. [Simplesmente, à vontade do “homem”; sem a Sabedoria Divina – Inspirada, em tentar saber as “coisas” – por si MESMO...]. Anselmo Estevan.

         O Eclesiastes tem sido cotejado com várias obras literárias do antigo Oriente. Quanto ao Egito, citam-se o Diálogo do desesperado com sua alma, os melancólicos cantos dos harpistas e as sentenças do papiro Insinger. Da Mesopotâmia, lembram-se o diálogo acróstico chamado de teodicéia babilônica e um texto bilíngüe sumério-acádico, descoberto recentemente em Ugarit, na costa fenícia. Os pontos de contato com a filosofia grega permanecem vagos e imprecisos, sem que se possa negar, contudo, certa atmosfera comum ao Eclesiastes de um lado, e ao epicurismo, estoicismo e cinismo, de outro. Sem dúvida, nosso autor viveu sob o domínio dos Ptolomeus, na Palestina, Isto é, no século III a.C. Talvez tenha tentado estabelecer um diálogo com os pensadores helenistas.

         Escreve em prosa ritmada, com freqüência paralelismos, retomando o mesmo pensamento de diferentes maneiras. A frase, longa e arrevezada, usa uma sintaxe bastante elementar. Não teme as repetições e as acumula num estilo quase litânico. Há palavras e expressões preferidas do autor, como: isso é vaidade, perseguir vento, debaixo do sol, sabedoria e loucura (insensatez). No entanto, apesar de sua deselegância e monotonia, a descrição que apresenta da velhice (12,1-8) é considerada um dos pontos altos da poesia bíblica.

         Abstraindo embora das perspectivas da Aliança e do messianismo, como o indica especialmente o uso da palavra “Deus” ou antes “a Divindade” (Ulhim com o artigo), o Eclesiastes não deixa de comungar da fé do seu povo. O DeusYaohu de Israel é também para ele o que fez todas as coisas (11,5; cf. 8,17), o Criador (12,1), que fez o mundo bonito (3,11) e o homem reto (7,29). Devemos teme-lo (3,14; 5,6; 7,18; cf. 8,12) e prestar-lhe um culto espiritual (4,17). A cada um ele julgará conforme as suas obras (3,17; 11,9; cf. 9,7; 12,14). No aguardo desse ajuste de contas definitivo. Yaohu oferece aos homens uma felicidade verdadeira, ainda que limitada (8,15; 9,7; 11,9), que podemos desfrutar, mas sem apegos exagerados. Perante os enganos dos sábios, as decepções da vida e a inconsistência de todo bem, o ser humano permanece insatisfeito. Sofre a nostalgia do absoluto e sonha com a descoberta do seu lugar no universo e do sentido de sua trajetória.

         O Eclesiastes mostra, com coragem e como que “cientificamente”, que, em matéria de fé, a instituição deixa um abismo escancarado aos nossos pés, que só Cristo poderá fazer desaparecer.       {Veja mais pra frente à pronúncia correta da palavra – CRISTO E SEU VERDADEIRO SIGNIFICADO...Que, foi “perdido durante o tempo”}. Anselmo Estevan.      

        

 

 

 

 

        

 

 

 

 

 

        

 

 

        

 

        

        

 

 

 

        

 

INTRODUÇÃO AO LIVRO DE:

 

 

CÂNTICO dos CÂNTICOS:

 

 

 

         INTRODUÇÃO

 

 

 

         Visão geral

         Autor: Desconhecido.

         Propósito: Celebrar a bênção do amor romântico entre marido e esposa.

         Data: Provavelmente 960-931 a.C.

 

 

 

         Propósito e características

         O termo “Cântico” no título (1,1) é o termo hebraico comum para qualquer melodia alegre. Não tem qualquer conotação religiosa especial. A expressão “Cântico dos Cânticos” significa “o melhor de todos os cânticos” (cf. a expressão “Rei dos reis” em Ap 17,14). Ele nos prepara para um cântico singular da mais alta qualidade.

         Com exceção do título, o Cântico é todo escrito em verso. É uma poesia de amor. Os versos são curtos e rítmicos, e a linguagem é rica em imagens e altamente sensual. O livro trata mais de sentimentos do que de fatos objetivos. O Cântico é uma rapsódia de amor, uma efusão das palavras e sentimentos de pessoas que estão experimentando o amor humano com suas dores concomitantes, prazeres e impulsos sexuais. É UM LIVRO PARA AQUELES QUE DESEJAM SABER OU LEMBRAR COMO YAOHU HONRAVA O AMOR ENTRE MARIDO E ESPOSA!

 

 

 

CRISTO EM CÂNTICO DOS CÂNTICOS.

         Há uma longa tradição de se relacionar esse livro a Cristo por meio de analogias traçadas entre as experiências dos dois amantes e a experiência de Cristo e a sua Igreja. De fato, a imagem de Yaohu como o marido e do povo de sua aliança como sua esposa também é encontrada no Antigo Testamento (p. ex., Jr 2,2; Os 2,14-20). Uma vez que Cristo declara a Igreja como a sua noiva (cf. Ef 5,22-33), uma aplicação legítima do Cântico dos Cânticos é perceber que o amor descrito no livro é, em muitos sentidos, semelhante ao amor que o SALVADOR tem pela Igreja (p. ex., esse é o uso predominante do Cântico dos Cânticos nos padrões de Westminster). Pelo menos, três dimensões centrais orientam os leitores modernos sobre a natureza desse amor: Autoentrega, desejo e compromisso. O SALVADOR deleita-se em nós e se entrega a nós como amor. Ele nos deseja totalmente para si e sente profundamente a dor e o prazer do seu relacionamento conosco. Cristo entregou a própria vida pela Igreja e ainda agora se dedica ao bem dela como um marido amoroso. A Igreja depende de Cristo para ter proteção e afeição; ela o honra pelo seu maravilhoso cuidado e busca a sua glória todos os dias. Tanto Cristo como a Igreja anseiam pelo dia de sua união final, o dia da grande festa de casamento na volta de Cristo (Ap 19,7.9).

 

 

 

         CÂNTICO DOS CÂNTICOS. O Cântico dos Cânticos constitui um dos problemas mais controvertidos da literatura bíblica. Que vem fazer no Antigo Testamento este poema (ou esta coletânea de poemas) de amor? Apresenta-se num tom bastante erótico. Parece interessar-se apenas pela beleza física, sem nunca falar de Deus – Yaohu ou da procriação. Contém alusões à geografia da Palestina e até reminiscências mitológicas; contudo, não oferece nenhuma chave evidente de interpretação. Quem foi que escreveu, e quando? Sobretudo: Por que e para que foi escrito? Se não foi para e simplesmente por engano que este livrinho entrou no cânon, como é que encontrou nele um lugar, a ponto de, mais tarde, ser lido na liturgia da Páscoa judaica?

         A própria estrutura do Cântico é difícil de determinar, cheio como está de repetições de versículos, temas, imagens e situações. Há quem veja nele apenas uma coletânea de poemas para serem usados em festas de bodas, justapondo canções de amor, que não são necessariamente hinos núpcias. Outros vislumbram certa ordem nas unidades poéticas mais amplas. Finalmente há também quem descubra uma coordenação de conjunto no poema.

         Não obstante certas tentativas de fazer remontar a composição aos tempos de Salomão ou pouco depois, a linguagem e o estilo parecem bastante recentes e nos fazem pensar na época persa (séc. V a.C.) ou mesmo no período helenístico (séc. III). Por outro lado, convém relevar grande número de arcaísmos, tanto na escolha das palavras como no torneio da frase, sem que isso se possa explicar sempre como recurso literário erudito. Destarte é possível que o Cântico, mesmo se de composição tardia, contenha elementos antigos, talvez da época de Salomão (p. ex. 3,6-11); elementos muito diversos, também, provindos ora do campo, ora da cidade, de Israel do Norte ou de Judá. Entretanto, seu autor certamente não é Salomão. Como no caso de Provérbios, Eclesiastes, o Cântico foi-lhe atribuído com base em 1Rs 5,12 e em alusões feitas por 1,5; 3,7.9.11; 8,11.12 (a primeira concernindo a um termo genérico – assim como se fala em “móveis Luiz XV” –, a segunda podendo estar inspirada num antigo epitalâmio e a terceira visando mostrar que o verdadeiro rei segundo o Cântico não é o Salomão da história!). Quanto à inclusão no cânon, houve certo mal-estar, talvez neutralizado, mas não apaziguado, pelo recurso à alegoria. Isso mostra que, seja qual for, o sentido original estava ofuscado. O poema teria sido usado em núpcias? É difícil dizer, apesar do costume de cantá-lo nas salas de banquete, costume criticado pelo Rabi Aqiba no fim do séc. I d.C. Seu uso litúrgico na Páscoa judaica não é atestado antes do séc. V d.C. Qualquer que seja o seu sentido, este cântico é profano ou sagrado, está no seu lugar na Bíblia ou entrou por engano? Para responder a esta pergunta tentou-se discernir o sentido do Cântico. Podem-se resumir sob quatro categorias as respostas, agrupadas duas a duas conforme visam à alegoria ou à realidade.

         1. A interpretação alegórica remonta ao séc. I d.C., e neutraliza o escândalo desta poesia erótica – muitas vezes constrangedora para judeus e cristãos. Interpreta as relações entre o jovem e a moça quer de maneira histórica, quer mística.

         Para a interpretação alegórica histórica apresentam-se diversas possibilidades: a) talvez se trate do confronto entre o povo de Yaohu e um outro povo, em algum momento da história – p. ex., os remanescentes das dez tribos do Norte no fim do séc. VIII procurando unir-se a Ezequias, mas encontrando a hostilidade de seus irmãos, quer dizer, de Judá; ou a relação entre Israel e os povos estrangeiros –; b) ou então, trata-se da relação entre o ETERNO e seu povo, quer em um momento determinado – p. ex., na volta do Exilo –, quer ao longo de certo período da vida de Israel ou mesmo de toda a história da Igreja.

         A interpretação mística oferece também dois caminhos: um, coletivo – em continuidade com as interpretações acima – visando a Yaohu e Israel, Cristo e a Igreja ou Cristo e a Humanidade; o outro, individual, relacionando Yaohu ou Cristo e a alma humana, ou mesmo o Rúkha hol – Rodshua (ESPÍRITO SANTO) – na união com a humanidade do SALVADOR – para com os que pertencem a Ele – SUA IGREJA, ou ainda, Salomão e a Sabedoria. Acrescente-se que esta mística pode ser desenvolvida seja como ascensão do homem para Yaohu – na linha do amor de que trata o Banquete de Platão –, seja como resposta da fé a Yaohu que se aproximou do ser humano.

         2. A interpretação cultual é outra modalidade da alegoria. Vê no Cântico a tradução de uma liturgia pagã do Oriente Médio em honra de um deus que morre e vai aos ínferos procurar sua amante, a deusa do amor e da guerra: os dois são representados pelo rei e pela grande sacerdotisa, cujo casamento sagrado (hierogamia) simboliza a união e provoca a renovação da fecundidade no Ano Novo. Também nesta interpretação esvazia-se o escândalo do erotismo, de certo modo, porque a união sexual aqui não tem uma finalidade em si mesma, mas está a serviço de uma causa religiosa. Os profetas de Israel combateram este tipo de culto (cf. Is 17,10; Ez 8,14; Zc 12,11). Entretanto, esta liturgia se teria introduzido em Jerusalém sob a vassalagem assíria de Manassés e, mais tarde, teria sido adaptada à teologia de Israel, assim como a festa agrária dos Pães sem Fermento foi reinterpretada para exprimir a fé histórica da Páscoa.

         3. A interpretação dramática aceita a realidade sexual do Cântico, mas evita aquilo que ela teme ser escândalo, fazendo passar a realidade sexual para o segundo plano. A fim de mostrar que este livro não precisa ser mítico para evitar ser obsceno, vê-se nele a descrição de um amor honesto, onde se destaca não tanto o sexo, mas a fidelidade. Mais: pelo fato de levar à cena não dois, mas três personagens, de modo que se assiste ao drama da pastorinha fiel ao seu pastor em detrimento de Salomão que a quer raptar, projeta-se sobre o apetite erótico inegável descrédito. Em forma tipológica, esta interpretação poderá reencontrar alguns elementos da tese alegórica.

         4. A interpretação naturalista vê no Cântico uma coletânea de canções de amor muito realistas, conservada como tal, ao modo das coletâneas de canções de amor egípcias ou de cantos populares árabes, ou sujeito a uma ordenação conforme o esquema das núpcias sírias que se realizam ainda no fim do século passado na Transjordânia e no Líbano. Alguns vêem no Cântico nada mais que uma composição literária (p. ex., para justificar o casamento de Salomão com a filha do Faraó) e chegou a falar em canto licencioso canonizado por engano. Há também quem fale do senso moral de um amor honesto – Juntando-se às vezes com facilidade, pela tipologia ou pelo drama, a alguma das interpretações acima mencionadas.

         5. Pode-se talvez propor uma quinta interpretação, levando em consideração vários elementos das anteriores. Alguns defensores da quarta tese notam que este canto de amor humano utiliza a linguagem dos profetas descrevendo a aliança entre Yaohu e Israel como um casamento; outros sublinham a influência da linguagem hierogâmica. Observa-se também que os dois grupos de teses mencionados se confrontam da seguinte maneira: Para 1 e 2, o sentido primeiro é sagrado e alegórico, e ao esquecer-se este sentido cai-se numa leitura sexual e profana; para 3 e 4, o sentido primeiro é sexual e profano, mas para evita-lo recorre-se à alegoria. Contudo, é bem possível que o amor de que fala o Cântico seja ao mesmo tempo sexual e sagrado, e a negação de um destes dois aspectos teria conduzido, num caso, ao sentido profano e, no outro, ao sentido alegórico. Nesta hipótese, o Cântico descreve o amor humano como tendo um fim em si mesmo, na obra boa que é a criação de Yaohu – quase como um comentário a Gn 2,23-24. Para tanto, o Cântico incorpora mais ou menos conscientemente os elementos da liturgia pagã do casamento sagrado, mas desmitizando-os radicalmente, a fim de mostrar que o verdadeiro papel do amor não é unir religiosamente a terra ao céu, mas sim unir duas criaturas que Yaohu criou complementares. E ele descreve este amor carnal autêntico (Pv 2,16-17; Mt 2,14) com a linguagem da aliança, para mostrar no amor de Yaohu para com seu povo o modelo de todo amor humano – da mesma forma como Paulo o dirá em Ef 5,25. Destarte, o sentido espiritual do Cântico está no seu sentido literal.

        

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

 

LIVROS PROFÉTICOS:

 

 

 

(ISAÍAS; JEREMIAS; LAMENTAÇÕES de JEREMIAS; EZEQUIEL; DANIEL; OSÉIAS; JOEL; AMÓS; OBADIAS; JONAS; MIQUÉIAS; NAUM; HABACUQUE; SOFONIAS; AGEU; ZACARIAS; MALAQUIAS).

 

 

 

ORGANIZAÇÃO DOS LIVROS

 

Os livros de Isaías a Malaquias (com exceção de Lamentações e Daniel) correspondem à seção do cânon hebraico chamado de “profetas posteriores”. Esses livros proféticos são divididos em dois grupos: “profetas maiores” (Isaías, Jeremias e Ezequiel) e “profetas menores” (de Oséias a Malaquias). Dentro dessas duas categorias amplas, os profetas são organizados em ordem cronológica aproximada.

 

 

 

CONTEXTOS HISTÓRICOS

 

         A maioria dos livros proféticos possui sobrescritos que visam apresentar o contexto em que cada profeta ministrou. Joel, Obadias, Jonas, Naum, Habacuque e Malaquias não trazem essa informação, de modo que o contexto histórico deve ser inferido pelo conteúdo dos seus livros. Por mais que o grau de definição do contexto histórico varie de um livro para outro, as informações a esse respeito contribuem de modo significativo para uma interpretação responsável.

         Em termos gerais, podemos falar de três conjuntos de circunstâncias históricas centrais no ministério dos profetas.

         (1) O julgamento por meio dos assírios. No século 8º, a Assíria era o império dominante do antigo Oriente Próximo e, portanto, de motivo grande preocupação para os profetas. Em resposta ao pecado manifesto e prolongado dos israelitas, Yaohu decidiu usar os exércitos da Assíria para julga-los. O ataque ocorreu em três estágios principais. Em c. 734 a.C., Israel, o reino do norte, se aliou à Síria para resistir ao domínio assírio, mas essa coalizão provocou a derrota da Síria e a subjugação severa de Israel pela Assíria (2Rs 15,20-29). Em 722 a.C., os assírios reagiram a novas rebeliões destruindo Samaria; a capital do reino do norte e exilando vários dos seus cidadãos. Por fim, em 701 a.C., o rei assírio Senaqueribe atacou Judá e chegou a sitiar Jerusalém, mas o ETERNO o fez recuar no último instante (2Rs 14 – 19). Os profetas que ministraram nesse período falam com freqüência desses acontecimentos e outros relacionados.

         (2) O julgamento por meio dos babilônios. Em 612 a.C., os babilônios conquistaram Nínive, a capital da Assíria e se tornaram o império dominante da região. Como Israel, o reino no norte, já havia sido derrotado e exilado pelos assírios, Yaohu usou os babilônios para julgar, o reino do sul, mediante invasões e deportações em 605 a.C., 597 a.C., e 586 a.C. A primeira invasão resultou na subjugação e deportação de alguns membros da elite de Judá, como Daniel e seus amigos (Dn 1,3-6). A segunda invasão resultou em mais dificuldades para o povo e em outra deportação de judeus, como Ezequiel (Ez 33,21; 2Rs 24,14). A terceira invasão resultou na destruição de Jerusalém e no exílio de quase toda a população (2Rs 25,1-21). Vários profetas predisseram esses acontecimentos, interpretaram-nos à medida que se desdobravam e refletiram sobre os mesmos após sua ocorrência.

         (3) Restauração. Em 539-538 a.C., o imperador Ciro da Pérsia derrotou a Babilônia e permitiu que os judeus voltassem a Jerusalém. Um pequeno número de judeus regressou à Terra Prometida sob a liderança de Josué, o sumo sacerdote e de Zorobabel, um descendente de Davi. Depois de alguns atrasos, o templo finalmente foi reconstruído em 520-515 a.C. Apesar desse recomeço relativamente promissor da comunidade restaurada, no tempo de Esdras e Neemias e nas décadas subseqüentes (c. 450 – 400 a.C.), a religião falsa se arraigou de tal modo entre o povo que voltou do exílio que todas as esperanças da concretização gloriosa do reino de Yaohu passaram a ser projetadas num futuro distante, conhecido hoje como o período do NOVO TESTAMENTO. Muitos profetas também trataram desses acontecimentos.

         O quadro abaixo fornece um resumo dos principais períodos, as datas aproximadas, as referências bíblicas e o público de cada escrito profético:

 

Período          Profeta         Data            Referência bíblica           Público

 

                        Amós         793-740          2Rs 14,21 – 15,7             Israel

Julgamento     Jonas          786-746           2Rs 14,23-29                      Assíria

Por meio         Oséias        7753-722        2Rs 15 – 18                        Israel

Dos Assírios    Miquéias    742-686          2Rs 14,23 – 20,21              Israel/Judá

                         Isaías         740-686          2Rs 15,1 – 20,21                Israel/Judá

                        Naum          663-627          2Rs 21,1 – 23,35                Assíria               .            

                      Sofonias      640-609        2Rs 22,1 – 23,35              Judá

Julgamento    Jeremias      626-586        2Rs 22 – 25                      Judá

Por meio       Habacuque 605                2Rs 23,36 – 25,21            Judá

Dos               Ezequiel      592-572        2Rs 24 – 25                      Judá no Exílio

Babilônios     Obadias      585                (cf. Jr 49,7-22)                  Edom                .

                      Ageu           520                Ed 5 – 6                           Judá

Restauração  Zacarias      520                Ed 5 – 6                           Judá

                      Malaquias   458-431        (cf. Ne 1,1)                        Judá                 .

       -             Joel             incerta                                                    Judá

 

 

          A verdadeira profecia cessou em Israel por volta do tempo de Malaquias. Em três ocasiões, o autor do livro apocalíptico de 1Macabeus (4,46; 9,27; 14,41) que, no geral, é um relato histórico sério da revolta dos judeus contra Antíoco Epifânio (c. 165 a.C.), afirma claramente que não havia profetas em Israel e sugere que esse fato não era recente.

          O período intertestamentário de silêncio terminou com a proclamação de João Batista de que Yaohu estava prestes a estabelecer o seu reino (Mt 3,12; Mc 1,3-8; Lc 3,2-17). Malaquias encerra a profecia do Antigo Testamento com uma predição de que Yaohu enviaria um mensageiro, um novo “Elias” a fim de preparar o caminho para a vinda futura de Yaohu ao seu povo (Ml 3,1; 4,5). O SALVADOR e os evangelhos identificaram João Batista como o Elias predito em Malaquias (Mt 17,12-13). Assim, João abriu caminho para uma nova era de profecia – a era do reino de Yaohu em Cristo.

 

         (1Co 1,1: Apóstolo – Alguém a quem Cristo escolheu diretamente e a quem deu autoridade para ser mensageiro de sua Palavra!).

 

         [Sendo assim, o meu entender é que: “Todo aquele”, que se auto-intitula ser “Apostolo”; “Profeta – realizando novas profecias”, é falso...!]. Anselmo Estevan.

 

 

O PAPEL DOS PROFETAS

         O profeta era a “boca” ou o porta-voz de Yaohu. O ETERNO disse a Moisés a respeito de Arão: “Ele te será por boca, e tu lhe serás por Deus” (Êx 4,16) e, posteriormente, resumiu esse papel da seguinte maneira: “Arão, teu irmão, será teu profeta” (Êx 7,1). Ser um profeta significava falar com autoridade em nome de Deus – YAOHU!

         A função básica dos profetas é expressa claramente em três relatos do chamamento de profetas por Yaohu que se assemelham em vários aspectos ao chamamento de Moisés por Yaohu em Êx 3,1-12 (Is 6,1-13; Jr 1,1-10; Ez 1,1 – 3,11). Em todos os casos, Yaohu confronta o profeta diretamente com uma palavra introdutória e uma comissão: Na sarça ardente (Êx 3,1-10), no templo (Is 6,1-10), num lugar não especificado (Jr 1,4-5) e na calmaria de uma tempestade (Ez 1,1 – 2,5). Depois de os profetas apresentarem objeções (Êx 3,11; Is 6,11; Jr 1,6; implicitamente, Ez 2,6.8), o ETERNO os tranqüiliza, por vezes com um sinal (Êx 3,12; Is 6,11-13; Jr 1,7-10; Ez 2,6 – 3,11). Essas vocações divinas não apenas garantiam aos próprios profetas que o chamado era proveniente de Yaohu, como também os autorizavam aos olhos de outros como indivíduos que não falariam com a sua própria autoridade, mas sim com a autoridade de Yaohu.

         Antes da monarquia humana em Israel, os profetas falavam em NOME de Deus – Yaohu de várias maneiras. Quando a monarquia humana foi instituída, os profetas se tornaram cada vez mais ligados aos governantes da terra. Os profetas de Israel serviam de emissários entre Yaohu, o Rei supremo, e seu rei humano e a nação, Israel. Usando de uma analogia como as práticas políticas do mundo antigo, o Rei divino de Israel enviava, emissários proféticos para dar orientação, louvar a fidelidade e condenar as transgressões das alianças que ele havia estabelecido com o seu povo vassalo.

         Essa função de emissário era extremamente importante para o ministério de todos os profetas do Antigo Testamento que registraram suas profecias por escrito. Eles ameaçaram maldições e ofereceram bênçãos de acordo com a aliança firmada entre Yaohu e Israel (veja Lv 26; Dt 28 – 30; cf. Is 1,2; Jr 2,9; Os 4,1; Mq 1,2; 6,2). Em conformidade com os termos da aliança, os profetas anunciaram várias maldições secundárias, bem como a maior maldição de todas, a saber, a destruição total e o exílio da Terra Prometida. Também proclamaram várias bênçãos secundárias, bem como a maior bênção de todas, a saber, a restauração depois do exílio. Todos esses elementos proféticos revelam o papel desses indivíduos como emissários do Rei divino em sua aliança com Israel.

 

 

OS VERDADEIROS PROFETAS E SUAS PREDIÇÕES

        

Tendo em vista os profetas falarem como emissários de Yaohu em sua relação de aliança com Israel, era essencial que o povo fizesse distinção entre os verdadeiros e os falsos profetas. O verdadeiro profeta era definido segundo três critérios: Devia ser um israelita (Dt 18,15); devia ser fiel à aliança mediada por Moisés (Dt 13,1-5); e suas predições deviam se cumprir (Dt 18,21-22). Na história de Israel, muitos dos que se proclamavam profetas falharam quanto a esses critérios, mas todos os profetas que deixaram suas profecias por escrito os satisfizeram plenamente.

         É importante compreender corretamente o terceiro critério que trata do cumprimento das predições. Por um lado, não há dúvidas que os decretos eternos de Yaohu incluem “tudo quanto pode ou há de acontecer em todas as circunstâncias imagináveis” e que esses decretos são imutáveis; Yaohu realiza infalivelmente tudo o que determinou (Confissão de Fé de Westminster 3,2; Catecismo Maior de Westminster 13). Assim, quando os profetas revelavam desígnios eternos em suas predições, estas se cumpriam sem falta. No entanto, seria um grave equívoco imaginar que todas as profecias revelam os decretos eternos e imutáveis de Yaohu. Na maior parte das vezes, os profetas falavam de acontecimentos futuros que não haviam sido determinados imutavelmente por Yaohu (veja o parágrafo a seguir). Sua tarefa principal era servir de instrumentos da providência divina.

         Jr 18,1-11 ensina claramente que nem todas as predições feitas por profetas verdadeiros se realizavam necessariamente. Pelo contrário, as palavras dos profetas visavam, com freqüência, motivar seus ouvintes, e não prognosticar acontecimentos. Muitas vezes, anunciavam os julgamentos futuros como ameaças, e não condenações inevitáveis, e falavam de bênçãos futuras como ofertas, e não promessas garantidas. Na verdade, os profetas revelavam que Yaohu tinha níveis diferentes de determinação no que se referia às predições proféticas. Em algumas ocasiões, a natureza condicional da profecia era explicada (p. ex., Jr 22,4-5). Em outras ocasiões, era implícita (p. ex., Jr 7,5-7; Is 7,9). Por vezes, Yaohu oferecia palavras ou sinais para confirmar o seu nível elevado de determinação de cumprir uma profecia (Is 38,7; Jr 44,29). Ocasionalmente, os profetas relatavam que Yaohu estava tão determinado a cumprir uma profecia que ele havia jurado faze-lo (Is 45,23; Jr 22,4-5; 49,13). Nessa última categoria, o juramento divino demonstrava o caráter inevitável do cumprimento de uma predição; elevava a palavra profética até o nível da imutabilidade, pois Yaohu jamais quebra seus votos solenes (Nm 23,19). Ainda assim, os detalhes acerca do modo, tempo, lugar e grau, e contra ou a favor de quem o cumprimento se daria normalmente não eram especificados, permanecendo ocultos até que a profecia jurada se cumprisse.

         Em decorrência disso, todas as predições proféticas podiam ser afetadas em maior ou menor grau pelas reações humanas a essas profecias. As Escrituras estão repletas de exemplos em que o arrependimento, a oração, e recalcitrância e a indiferença levaram Yaohu a suspender, adiar, estender, abreviar, apressar, amenizar ou intensificar o cumprimento das predições proféticas (Êx 32,12; 2Sm 12,14-22; Jo 3,4-9).

         Por esse motivo, quando aplicamos corretamente o critério das predições cumpridas aos verdadeiros profetas, devemos sempre perguntar de que maneira os profetas pretendiam que suas predições fossem compreendidas. Que nível de determinação divina as palavras do profeta indicavam? Era intenção do profeta que suas predições fossem consideradas condicionais ou inevitáveis? Não devemos nos contentar com uma compreensão mecânica da palavra profética desassociada de tais intenções proféticas.

         Mesmo assim, as profecias bíblicas são tão abrangentes e específicas que envergonham os profetas pagãos (Is 41,21-29). Todas as épocas e povos, especialmente do antigo Oriente Próximo, tiveram seus adivinhadores, videntes ou feiticeiros que afirmavam anunciar o futuro (Dt 18,9-13; 1Rs 18,19.25,40). No entanto, não há nada em toda a literatura do antigo Oriente Próximo que se compare às profecias reunidas nas Escrituras. Sua especificidade e cumprimento notável e sua compreensão abrangente e magnífica da História não têm paralelos em nenhuma outra tradição literária. Em muitas ocasiões, suas profecias de destruição foram proferidas quando a nação estava no auge do poder, e suas profecias de vitória foram dadas em situações que pareciam inteiramente perdidas.

 

 

 

AS FORMAS DE LITERATURA PROFÉTICA

      

         Os profetas utilizaram basicamente três formas literárias em seus livros: (1) narrativas – tanto biográficas (Dn 1 – 3) como autobiografias (Is 6; Jr 1); (2) discursos dirigidos a Yaohu – Lamentos (Jr 9,10; [Lamentações de Jeremias]; Ez 2,3-10); petições (Jr 42,2; Dn 9,17) e louvor (Is 12,1-6), e (3) discursos dirigidos a pessoascomo cântico de escárnio (Is 14), ditos de sabedoria (Is 28,23-29) e contestações (Is 1,18; 43,26), entre outros.

         Os oráculos dirigidos a pessoas são predominantes nos livros proféticos. Esses discursos podem ser classificados de acordo com a tendência a focalizar mais as maldições ou as bênçãos da aliança. Embora os profetas se dirigissem ao povo de várias maneiras, alguns padrões básicos de discurso aparecem com tanta freqüência que é proveitoso identifica-los e descreve-los.

         Por um lado, várias formas de discurso tinham como objetivo maior anunciar desde as maldições secundárias da aliança até a maior ameaça de todas, ou seja, o exílio.

         (1) Demandas. Como emissários do Rei celestial de Israel, os profetas ouviam e, por vezes, participavam do tribunal do céu. Em seguida, relatavam o que haviam visto e ouvido em linguagem jurídica formal. Yaohu entrava em juízo contra o seu povo por este haver transgredido manifestamente a sua aliança e os sentenciava a maldições severas (Is 3,13; Mq 6,1-2).

         (2) Oráculos de julgamento. Os profetas também transmitiam mensagem de destruição numa linguagem que não refletia de modo tão direto as formalidades do tribunal celestial. Esses oráculos normalmente se iniciavam identificando a quem eram dirigidos e, em seguida, apresentavam uma ou mais acusações e sentenças (Ez 7,7-10; Zc 9,1-8).

         (3) Os ais. Quando o julgamento de Yaohu era particularmente severo, os profetas expressavam ais. Esses discursos normalmente eram bastante semelhantes aos oráculos de julgamento (identificação do destinatário, acusações e sentenças) com o acréscimo de um clamor de “ai”. Advertiam sobre coisas terríveis que aconteceriam quando as maldições sobreviessem (Is 3,9-11; 5,8-22; Ez 13,3-18; Os 7,13; Na 3,1).

         Por outro lado, os profetas também anunciavam bênçãos, desde vantagens relativamente pequenas e pessoais até à bênção suprema de restauração do povo à Terra Prometida depois do exílio. Normalmente, essas profecias eram dadas de dois modos:

 

         (1) Oráculos de salvação. Os profetas consolavam Israel com oráculos de salvação ou libertação. Esses oráculos assumiam várias formas diferentes, mas normalmente incluíam algum tipo de anúncio de bênção seguido de detalhes sobre a maravilha dessa bênção. O foco principal dos oráculos de salvação era a restauração do povo de Yaohu à Terra Prometida depois do exílio, tema que ocupa seções extensas dos Profetas Maiores (Is 40 – 55; Jr 30 – 33; Ez 34 – 40). Essas profecias de consolo eram baseadas nas promessas feitas por Yaohu em sua aliança com os patriarcas (Gn 15,1-21; 17,1-22; 22,15-18), as quais Moisés confirmou posteriormente ao descrever o período posterior ao exílio vindouro como um tempo em que Yaohu derramaria misericórdia e bênçãos sem precedentes sobre o seu povo (Dt 30,1-10).

         As promessas de restauração se cumpriram parcialmente na volta do exílio em 539-538 a.C. (Veja 2Cr 36,22-23; Zc 1,8-17), mas o Novo Testamento revela que o seu cumprimento total se encontra em Cristo. Nesse sentido, profecias de restauração foram inspiradas pelo RúkhaYaohushua: O Espírito de Cristo para a sua Igreja (1Pe 1,10-12; 2Pe 1,19-20). Algumas se referem diretamente ao ministério de Cristo aqui na terra, enquanto outras dizem respeito ao ministério e reinado de Cristo no céu e à obra da Igreja em andamento no presente. Todas as profecias se cumprirão plenamente nas realidades dos novos céus e nova terra quando Cristo voltar.

 

         (2) Oráculos contra as nações. Os profetas também transmitiam mensagens de esperança e salvação para o povo de Yaohu por meio do pronunciamento de julgamentos contra outras nações que haviam se rebelado contra o ETERNO. Ainda que num sentido formal essas profecias fossem julgamentos, serviam também de garantia de salvação para o povo fiel de Yaohu, pois eram voltadas contra os seus inimigos. Os livros de Naum e Obadias são inteiramente constituídos de descrições de guerra santa contra os gentios. Seções extensas dos livros maiores também são dedicadas a oráculos contra as nações (Is 13 – 24; Jr 46 – 51; Ez 25 – 32).

         Os oráculos contra as nações se dividem em dois tipos principais. Muitas das profecias anunciavam que Yaohu julgaria nações específicas por meio dos ataques de outras nações (p. ex., Am 1,2 – 2,3; Sf 1,18-21). No entanto, vários profetas proclamaram que um julgamento mundial final contra as nações ocorreria depois que o povo de Yaohu tivesse voltado do exílio (Ez 38,17-23; Am 9,12; Ag 2,20-23).

 

 

CRISTO NOS PROFETAS.

Os profetas do Antigo Testamento apontam para Cristo e sua obra de várias maneiras. Em todos os casos, Cristo cumpriu dimensões dessas expectativas proféticas em sua primeira vinda, continua a cumpri-las em seu ministério à Igreja nos dias de hoje e as cumprirá definitivamente na consumação de todas as coisas em sua segunda vinda (“O Reino de Yaohu” – Mt 4).

         Na maioria dos casos, os profetas prenunciaram Cristo de modo bastante indireto, especialmente ao falarem de julgamentos e bênçãos secundárias cujo cumprimento se deu, em geral, durante o Antigo Testamento. Esses atos de justiça e misericórdia divina já haviam ocorrido, mas também prefiguravam os julgamentos e bênçãos maiores que Cristo traria.

         Os profetas predisseram Cristo e sua obra mais diretamente ao se concentrarem no grande julgamento do exílio e na bênção da restauração do povo à Terra Prometida depois do exílio (com os respectivos julgamentos contra as nações por ocasião da restauração). A destruição e exílio de Israel e Judá foram apenas prelúdios do julgamento eterno que sobrevirá contra o povo da aliança que se rebelar contra Yaohu. Do mesmo modo, a restauração do povo fiel de Yaohu à Terra Prometida e as bênçãos que receberam, bem como o julgamento contra as nações, predito para os dias de restauração, prenunciaram a recompensa e o julgamento final que Cristo trará.

         As predições mais diretas acerca de Cristo podem ser vistas nas ocasiões em que os profetas falam de atividades reais e sacerdotais especificas que ocorreriam em conjunto com a restauração depois do exílio (“Levantarei o tabernáculo caído de Davi” [Am 9,11]; “Te farei como um anel de selar” [Ag 2,23]) É nesse contexto que as profecias messiânicas de cunho real aparecem. Ao falarem dos dias do reino de Yaohu depois do exílio, os profetas se referiram às maneiras em que o Filho de Davi julgaria os inimigos de Yaohu e traria bênçãos eternas sobre o seu povo. Essas predições se cumpriram, estão se cumprindo e se cumprirão em o SALVADOR – CHRISTÓS = O UNGIDO!